Claude Piron

Comunicação linguística:
investigação comparativa feita no terreno


O original francês deste artigo apareceu em Language Problems & Language Planning, vol. 26, 1, 23-50. A versão em esperanto, feita por Leo De Cooman, foi actualizada e, em parte reescrita, pelo autor. É desta versão que nasce a tradução portuguesa.


1. Introdução
2. As cinco opções
3. Os critérios

a) Continuação da aprendizagem anterior
b) Os investimentos anteriores do Estado
c) Investimento anterior da instituição
d) Desigualdade e discriminação
e) Custo linguístico de uma reunião
f) Custo de produção dos documentos
g) Tempo limite para a recepção de um documento em diversas línguas
h) Perdas e distorções da informação
i) Frequência e gravidade de um défice linguístico
j) Défice linguístico na leitura
k) Limitações e incómodos
l) Provável agravamento das desvantagens nos próximos vinte anos
m) Problemas terminológicos

4. Nota acerca das reuniões em esperanto
5. Balanço dos quatro sistemas
6. Conclusão


Introdução


O nosso mundo encolhe. As comunicações internacionais, comerciais, pessoais e culturais desenvolvem-se com uma rapidez impressionante e viajar ao estrangeiro tornou-se uma banalidade para muita gente que há apenas algumas décadas nem sonharia com isso. Para além disso, as pessoas deslocalizam-se constantemente: refugiados e candidatos a asilo político multiplicam-se cada vez mais, bem como emigrantes aspirando a um nível de vida que nunca poderiam alcançar na sua terra. De todos estes factores resulta um agravamento da problemática linguística que infelizmente não é seriamente considerado, tal como se evita considerar os lamentáveis resultados da aprendizagem escolar de línguas. Fora das regiões de línguas germânicas apenas 1% dos jovens europeus diplomados é capaz de exprimir-se sem erros em inglês, após seis anos de aprendizagem, a quatro horas por semana. (1) Na Ásia, a proporção correspondente é de 1 em mil. Mas estes factos não estimulam, que se veja, uma reflexão crítica. É aceite com resignação e lamento.


Nas organizações interestatais, muitas delegações defendem a ampliação dos serviços linguísticos, como facilmente se constata nos corredores da ONU. Sente-se, com cada vez maior intensidade, pressões para que seja concedido o estatuto de língua oficial ao japonês, ao hindu e a outras línguas. Na Europa, os problemas linguísticos tornam-se cada vez mais uma dor de cabeça. Eles são em si mesmo uma «bomba adiada», como disse Bernard Cassen, no Le monde diplomatique. Vários países da Europa central e oriental aderiram à União Europeia, outros já pediram adesão, e embora os políticos reajam habitualmente de forma favorável a tais pedidos, evitam o mais possível tratar dos aspectos linguísticos desta ampliação, como se a expressão “governar é prever” tivesse perdido a validade.


Contudo em breve as complicações, desigualdades e custos causados pela comunicação linguística, conjugados com uma insatisfatória eficácia da instrução de línguas, ultrapassarão os limites do que a sociedade pode sustentar. Este documento, baseado numa investigação dos factos, tem por objectivo ajudar aqueles que têm a obrigação de definir uma estratégia para superar as dificuldades que surgirão em breve.


Não há motivo para não aplicar o princípio da investigação operacional ao campo da comunicação linguística internacional. São frequentes, hoje em dia, as situações em que falantes de diferentes línguas têm de comunicar entre si e, por conseguinte, não rareiam as ocasiões para observar, como eles se contorcem para superar as barreiras linguísticas. O objectivo desta investigação é claro: definir qual é o método mais adequado e justo para comunicar, aquele que apresenta a melhor relação entre qualidade e preço (ou eficácia/custo) e que se mostra, psicologicamente, o mais satisfatório para o maior número de interessados. Para alcançar este objectivo, vários sistemas rivalizam. É possível observar como eles se apresentam na prática, segundo critérios predefinidos, e depois submeter os factos recolhidos à análise quantitativa, com o fito de pôr em relevo as vantagens e desvantagens dos diversos sistemas.


As cinco opções


Apenas os sistemas que possibilitam um alto nível de comunicação serão considerados nesta investigação. Há inúmeras situações em que falantes de línguas diferentes intercomunicam, com relativo sucesso, por gestos, esgares, inglês rudimentar ou pelo uso desajeitado de uma língua local mal pronunciada, mas isso não nos interessa aqui. Não seria possível em curto artigo tratar todas as necessidades linguísticas do nosso planeta. Limitar-nos-emos às situações em que é absolutamente necessário uma comunicação clara, precisa, exacta e detalhada, como por exemplo no Parlamento Europeu ou na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas). As necessidades linguísticas que aqui serão consideradas são as dos representantes de Estado, europarlamentares, especialistas, conselheiros e colaboradores de organizações internacionais, governamentais e não governamentais, e também as dos cientistas, especialistas e outros profissionais que participam em congressos ou publicam artigos para troca de ideias ou informações, com um alto nível de complexidade.


Um investigador, considerando todas as situações possíveis em que ocorrem comunicações internacionais deste nível, facilmente constata que na actualidade são usados apenas cinco métodos. São, por ordem de importância mundial:


1) o sistema oligolingue: é o sistema que usam a ONU, a maioria das organizações interestatais, bem como muitíssimas organizações não governamentais, associações internacionais e congressos internacionais: um limitado número de línguas com interpretação simultânea da comunicação falada e tradução de documentos; (2)


2) o sistema etnolingue: este sistema, em que se usa uma língua nacional, em geral o inglês, é aplicado pelas grandes firmas multinacionais; é também frequentemente usado nas relações interpessoais e em pequenos grupos de especialistas;


3) o sistema omnilingue: como pratica a União Europeia: aceita a língua de cada estado membro e disponibiliza aos participantes a interpretação simultânea e a tradução de documentos;


4) o sistema interlingue: usam-nos organizações nas quais se comunica por língua interétnica, que nunca foi língua de povo nenhum (swahili, esperanto); por razões práticas apenas o funcionamento linguístico das associações de língua esperanto será aqui considerado;


5) o sistema “suíço” ou “escandinavo”: cada um usa a sua língua materna que não precisa de ser traduzido ou interpretado, porque os participantes compreendem todas as línguas usadas. Este método, aplicado nas reuniões da companhia aérea escandinava SAS, é também usado com frequência em meios intelectuais na Suiça. É o sistema do "Conselho dos estados" (a Câmara alta, a Câmara dos cantões) e das comissões do parlamento suíço, onde está suposto que cada deputado compreenda alemão, francês e italiano.


Este último sistema não é analisado neste estudo, porque é usado apenas em ambientes culturais limitados. Não responde às necessidades de comunicação sentidas à escala mundial ou mesmo num território limitado, como o da União Europeia. É apenas adequado para um número de línguas limitado a três ou quatro, se a distância entre as culturas não for demasiado grande e se o sistema educativo der o realce necessário à aprendizagem de línguas.


Os critérios


A maior parte deste artigo será dedicada aos critérios que possibilitam situar cada um dos quatro sistemas a considerar, em relação aos seus rivais. Os critérios, que serão detalhados posteriormente, deverão dar uma ideia geral da situação.


a) Continuação da aprendizagem anterior


O sistema omnilingue, usado na União Europeia, é o único que não obriga a uma anterior aprendizagem de línguas, pelo menos se tivermos em conta apenas as reuniões, para as quais são disponibilizadas interpretação e tradução. Nas outras três fórmulas a aprendizagem de línguas é necessária, pelo menos, para uma parte dos participantes. No sistema etnolingue (usado por empresas multinacionais, mas também em muitos encontros interpessoais e pequenos grupos especializados) todos aqueles cuja língua materna não é o inglês devem aprendê-lo. E no sistema oligolingue (ONU) a maioria tem também de aprender línguas, porque a língua de trabalho e a língua materna é a mesma apenas para uma minoria. No sistema interlingue (esperanto) cada um deve aprender a língua comum. Se bem que haja crianças cuja língua materna é o esperanto, esse facto não é suficientemente significativo para que nos incomodemos com ele.


Nas sedes da União Europeia, cada vez mais se fala dos problemas que é preciso enfrentar desde que os falantes de checo, estoniano, húngaro, letão, lituano, maltês, polaco, eslovaco e esloveno participam na vida das instituições. Uma das possibilidades ventiladas com frequência é a da redução do número das línguas de trabalho. Se esta fórmula se tornasse aceite, para participar num debate ou redigir um documento na União Europeia estaríamos na mesma situação das Nações Unidas: muitos não poderiam mais cumprir a sua função sem uma anterior aprendizagem de uma língua.


Ao contrário da ideia facilitista que se propagandeia, para dominar uma língua estrangeira é preciso grande quantidade de tempo e energia nervosa. Para alguém que participe em delicados tratados ou fale na tribuna do Parlamento ou da Assembleia Geral não basta fazer-se compreender, é necessário um nível de expressão que permita convencer, argumentar, rebater de imediato, tocar ao sentimento dos presentes, a quem se fala e simultaneamente evitar o risco do ridículo. O Senhor Cornelio Sammaruga, presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, causou risota geral, quando, ao falar perante os delegados de IKRK espalhados pelo mundo, pronunciou: "Nos délégués sont des zéros" (em vez de "des héros") (3). [Por causa da pronúncia defeituosa, a frase "Os nossos delegados são uns heróis” tornou-se de facto “Os nossos delegados são uns zeros”]. Contudo, nesse tempo, ele vivia numa região francófona, trabalhava há muitos anos em língua francesa, sobretudo, e dominava esta língua muito melhor do que o diplomata médio. O facto de um homem de tal nível não ser capaz de evitar graves despistes linguísticos põe em relevo a enormidade da tarefa que representa o esforço de adquirir uma língua estrangeira até ao grau de competência desejável nas relações internacionais. Dum modo semelhante, quando a ministra dinamarquesa Helle Degn, abrindo uma reunião internacional quis dizer que pedia a indulgência dos participantes, porque tinha acabo de ser empossada e não tinha tido tempo para dominar convenientemente o assunto, disse: "I'm at the beginning of my period" (4) ["Estou no começo da minha menstruação” em vez de “do meu cargo”], tornando-se, através dos jornalistas, uma figura patusca para a opinião pública internacional. Contudo a Dinamarca é um dos países onde o inglês é mais bem usado, e antes de ter pronunciado aquela frase ela estudou e praticou inglês vários milhares de horas.


Em política não é de somenos ser objecto de ridículo. Nestas situações, quer os colegas quer o público recordam, não o que a pessoa disse, mas as falas que os divertiram. O facto de que, após 2000 horas de estudo de língua, seguidas do triplo de prática, uma pessoa ainda possa cair em tais ratoeiras, ilustra de forma eloquente a imensidão da tarefa que tem de ser levada a cabo para que possa, num fórum oficial, exprimir-se em língua estrangeira. A nossa língua materna radica-se no nosso sistema nervoso em grau igual ao do funcionamento motor da mão direita, nos nervos motores de um destro. Obrigar alguém a exprimir-se em língua estrangeira é igual a obrigar um destro a efectuar tudo com a mão esquerda. Ninguém domina uma língua estrangeira, ao nível da exigência dos meios internacionais, com menos de 10.000 horas de estudo e prática (5). O esperanto representa um caso à parte no que respeita à rapidez de aprendizagem: o nível de domínio é alcançado, em média, após 150 a 220 horas (as razões desta diferença serão clarificadas posteriormente, no critério i).


b) Investimentos anteriores do estado


O critério acabado de avaliar diz respeito a pessoas que devem falar ou apresentar documentos em meios internacionais. Mas a aprendizagem anterior da língua, requerida para esse fim, não seria possível sem um investimento feito pelo Estado. A educação linguística impõe, em todo o mundo, um investimento gigante de tempo e dinheiro. Se essa organização é indispensável para assegurar que um Estado, ou um partido, seja representado de modo eficaz, a nível internacional, isso é um factor que não pode ser desprezado. O sistema omnilingue (o da União Europeia) e nas actuais circunstâncias também o interlingue (esperanto) permite aos Estados, deste ponto de vista, consideráveis economias. Mas se amanhã se obrigar os europarlamentares húngaros, gregos e outros a exprimirem-se em inglês ou francês, os respectivos Estados deverão investir em educação linguística quantias líquidas superiores às actuais. Têm de garantir um alto nível linguístico a uma parte suficientemente vasta da população para evitar situações de inferioridade dos seus representantes ou dos eleitos dos seus diversos partidos, em comparação com os seus homólogos de países que são “potências linguísticas”.


c) Investimento anterior da instituição


Dois dos sistemas linguísticos impõem investimentos específicos que os dois outros sistemas evitam. As multinacionais e outras empresas usando o sistema etnolingue (uma língua nacional), poupam nos muito caros serviços de língua (pelo menos no que respeita ao funcionamento interno; propaganda e relações com o público situam-se fora da esfera desta investigação). O mesmo ocorre com as associações de esperanto cujo regime linguístico denominamos interlingue.


Adoptar um sistema com tradução e interpretação implica automaticamente tomar em consideração o aumento dos assalariados, em proporção com o número de línguas usadas. Este aumento de pessoal torna necessário uma série de investimentos. Os campos, nos quais os investimentos têm que ser feitos, enquanto um novo sistema linguístico não for aplicado, são essencialmente os seguintes:


- assalariar e treinar um corpo de profissionais de língua;


- adaptar espaços para o uso simultâneo de várias línguas (a ampliação da União Europeia em 2004 obrigou a juntar às salas de reuniões nove novas cabines de interpretação; e quer o número de conexões entre estas cabines, quer, por outro lado, os microfones e auscultadores dos participantes devem cobrir todas as combinações possíveis de línguas, isto é, para 23 línguas, em 2007, são 506 as combinações);


- organizar um serviço de dactilografia para cada língua com tudo o que isso implica, o que inclui contratar pessoal e comprar equipamento, tal como, computadores, programas de elaboração de texto adaptados a cada língua, fotocopiadoras, impressoras, provisões de papel e objectos de secretaria necessários;


- proporcionar apoio para tradutores: bibliotecas (com provisão de dicionários especializados e livros básicos em cada língua), serviços bibliográficos, serviço de terminologia, acesso a banco de dados, sistemas de busca electrónica, etc.


- dotar os serviços de dactilografia e tradução de um espaço oficial, com todos os custos inerentes: mobiliário, aquecimento, telefone, electricidade, elevadores, serviço de transporte de documentos, quer humanos, quer pneumáticos, etc., lugares para classificar e guardar os documentos em todas as línguas usadas;


- planear as alterações que o afluxo do novo pessoal ligado à(s) nova(s) língua(s) causará: será necessário aumentar os guardas, o espaço de parqueamento automóvel, o espaço e a organização de cafetaria e restauração, o pessoal de secretaria no serviço de pessoal, bem como no da contabilidade, saúde, social, conferências e viagens.


d) Desigualdade e discriminação


Alguns sistemas linguísticos são discriminatórios, outros não. No sistema etnolingue (de uma língua nacional) as pessoas cuja língua materna é usada (mais frequentemente, os anglófonos) gozam de vantagem linguística face aos seus colegas, que são desfavorecidos por causa do seu local de nascimento.


O sistema mais discriminatório é o oligolingue (algumas línguas), aplicado pela ONU e por diversas instituições, associações e congressos. Nas Nações Unidas, um delegado belga francófono tem o direito de usar a sua língua, mas ao seu colega da Flandres isso não é permitido. Um sírio, um argentino ou um chinês podem explorar toda a eloquência e potencial de convicção da sua língua materna, mas isso é recusado a um afegão, brasileiro ou japonês. Para os estados cujas línguas não têm estatuto internacional, a aceitação de uma nova língua faz crescer a desigualdade, porque aumenta o número de possíveis adversários mais bem equipados linguisticamente do que eles para, por meios adequados, fazerem valorizar os seus pontos de vista. Ironicamente, esta relativa perda de influência é paga pelos Estados que a perdem. A junção de uma nova língua de trabalho aumenta de facto o orçamento geral, em cujo financiamento todos participam proporcionalmente, como antes. Aparentemente ninguém propôs modificar os valores das contribuições ao financiamento da instituição para compensar o fortalecimento ou enfraquecimento que a junção de uma nova língua causa a um Estado.


Teoricamente, o actual sistema da União Europeia garante a igualdade entre os povos. Na prática, contudo, esta afirmação deve ser colocada sob reserva.


Por um lado, no secretariado quase não se usam línguas como a holandesa, grega, portuguesa, finlandesa ou dos países que aderiram em 2004. Algumas línguas são pois “mais iguais do que outras”, quer quando se trata de um cargo de oficial europeu, quer quando um cidadão ou parlamentar deseja contactar a administração.


Por outro lado, porque quase não existem intérpretes capazes de estabelecer algumas combinações linguísticas, como o português-grego, esloveno-estoniano, holandês-finlandês, etc., usa-se para estas línguas o sistema de estafeta, também dito de intermediação por uma língua de apoio: o intérprete português liga-se à cabine de língua inglesa e traduz para a sua língua, não a fala original, que ele não compreende, mas a versão inglesa. Segundo um estudo feito pelas Nações Unidas sobre os próprios serviços de línguas, "em reuniões científicas a perda de informação pelo sistema de estafeta é de pelo menos 50%". (6)


Os representantes dos diversos países não gozam portanto de igualdade, porque um português, finlandês, dinamarquês, grego, húngaro, esloveno e outros têm menos oportunidades de serem compreendidos totalmente e sem erros do que os participantes que usam uma língua “maior”. Toda a interpretação comporta uma perda e deformação de parte da informação transmitida; quando se dá uma dupla interpretação estas falhas multiplicam-se.


Terceira reserva: o serviço das marcas registadas, cuja sede é em Munique, não usa todas as línguas dos estados-membros da União Europeia.


O problema da desigualdade, actualmente de somenos importância na UE, tornar-se-á aqui tão grande como na ONU, se algum dia for decidido limitar o número de línguas.


O sistema interlingue (esperanto) evita todo o tipo de discriminação: todos usam uma língua, que devem aprender num tempo limitado e aproximadamente igual, seja qual for a sua língua materna. Ninguém goza de uma superioridade linguística pelo simples facto de pertencer a um povo específico, porque ninguém usa a língua do seu país ou da sua região. Esta vantagem já foi destacada num relatório da Liga das Nações:


"No secretariado da Liga das Nações tivemos o exemplo da conferência internacional de autoridades escolares cujos debates ocorreram em esperanto. (...) O que sobretudo impressiona é a equalitarização que o uso de uma língua comum comporta, o que coloca todos no mesmo plano e possibilita ao delegado de Pequim ou Haia exprimir-se com tanta veemência quanto os seus colegas de Paris ou Londres. (7)


Da observação de reuniões e congressos internacionais evidencia-se que existe uma correlação entre o direito de usar a própria língua e a frequência do uso da palavra. Quem não tem o direito de usar a própria língua intervém menos no debate. Só são possíveis dois meios para colocar os oriundos de diversos países no mesmo plano de igualdade:


a) cada um ter o direito de usar a sua língua materna,


b) ninguém ter o direito de usar a sua língua materna.


Teoricamente, existe uma terceira opção, para além dos sistemas omnilingue e interlingue, que evita a discriminação: o uso de apenas algumas línguas (o sistema oligolingue), mas com a proibição do falante ou redactante exprimir-se na própria língua. Num tal sistema, se a União Europeia limitasse as línguas de trabalho, por exemplo, ao inglês, francês e alemão, os ingleses, franceses e alemães deveriam exprimir-se por uma outra língua que não a própria, para não gozarem de um privilégio sobre os seus colegas “menos iguais”. De facto, esta fórmula, que restabeleceria uma igualdade plena, não tem muitas oportunidades de ser aplicada por causa das relações de força política entre os Estados.


e) Custo linguístico de uma reunião


O custo maior, imputável à comunicação linguística numa reunião, é o da interpretação. Incide principalmente no salário dos intérpretes e do técnico que assegura as ligações e conexões. Claro, quanto maior o número de línguas, tanto maior o custo. O sistema omnilingue (o da UE) destaca-se entre todos, como aquele em que os custos de reunião são os mais altos. Em boa verdade, em relação a este assunto a distância entre a União Europeia e as outras instituições internacionais é gigantesca. Os sistemas monolingue e interlingue, sob este ponto de vista, não custam nada.


f) Custo de produção de documentos


Quanto maior o número de línguas de trabalho, tanto maior os custos com a produção de documentos. Estes custos englobam sobretudo os salários dos tradutores, revisores, terminologistas, bibliotecários, referencistas (onde existem, como na ONU) e dactilógrafos por um lado e, por outro, produtos de escritório e outras despesas renováveis (papel, amortização de computadores, electricidade, telefone e fax, limpeza dos espaços, distribuição e envio de documentos, etc.).


Um facto, frequentemente ignorado fora do meio, é o, não raro, trabalho de detective que o tradutor faz. Com frequência, uma palavra condensa vários aspectos informativos, mas as diversas intersecções em muito se diferenciam de uma língua para outra. Por exemplo, as palavras inglesas his secretary não dão nenhuma informação sobre o sexo da pessoa referida, mas refere que ele ou ela trabalha para um homem. Em português, é o contrário: o seu secretário ou a sua secretária indicam o sexo do oficial, mas nada permite saber sobre o sexo do dirigente. Ora não é possível traduzir adequadamente tais expressões sem saber os detalhes afins. O nome do indivíduo pode ajudar, mas nem sempre, principalmente se se trata de uma cultura exótica. Secretary Tan Buting é homem ou mulher? Não é possível traduzir aquelas palavras sem investigar. Em muitos países, errar sobre o sexo é uma ofensa grave. Para além disso, o nome pessoal nem sempre está disponível. Do mesmo modo, não é possível traduzir na maior parte das línguas a expressão inglesa to develop such an industry sem saber da situação económica da região considerada, porque a expressão inglesa tanto pode significar «criar uma nova indústria» como «desenvolver uma indústria já existente». O tradutor deve investigar para saber do que se trata, o que evidencia a importância do computador, do telefone, do fax e de uma boa biblioteca.


À margem, a necessidade do tradutor encontrar resposta para questões não linguísticas é uma das razões pelas quais a tradução computorizada é altamente ilusória. Oitenta por cento do tempo do tradutor é dedicado a investigações sem relação com as línguas ou a problemas linguísticos insolúveis (nenhum língua é capaz de exprimir tudo de forma exacta). O que, em relação à tradução, um computador pode fazer, fá-lo o tradutor em pouco tempo, em aproximadamente dez por cento do seu dia de trabalho. Mas as investigações que uma perfeita tradução obriga impõem uma sagacidade e esperteza que superam as capacidades da melhor rede de aparelhos com a chamada inteligência artificial.


Os documentos para traduzir são de tipologia diversa. São, entre outros, os seguintes:


a) correspondências; muitas cartas chegam em língua não compreendida pelo destinatário ou pelo oficial responsável pela resposta;


b) documentos fundamentais, como na União Europeia, o Tratado de Maastricht ou o projecto de Constituição; esta categoria inclui textos jurídicos e regulamentares que regem a vida das instituições;


c) protocolos e relatórios de reuniões, projectos de resolução propostos e resoluções aceites pelos órgãos de decisão;


ĉ) relatórios periódicos (por exemplo, na rede da ONU e nas instituições europeias, relatórios sobre a situação económica, social, cultural, educativa e sanidade pública);


d) estudos e relatórios de investigação, cujo preparo um órgão de alto nível delegou no secretariado ou num grupo especializado;


e) relatórios sobre o estado de projectos em execução;


f) contractos;


g) documentos de trabalho elaborados por uma delegação ou por pequenos grupos de trabalho.


O custo linguístico da documentação depende da eficiência dos tradutores. Na prática, porém, é impossível ter uma ideia exacta da sua eficiência média, porque as estatísticas são geralmente manipuladas para esconder a fraca produção dos serviços linguísticos. Por exemplo, um documento de 50 páginas reenviado à secção de tradução para corrigir dez vezes a mesma palavra será registado no ficheiro de entrada com o total do número de páginas do documento: o trabalho será concluído em alguns minutos, mas o secretariado registará 50 páginas nas suas estatísticas. Tais pequenos arranjos são provavelmente inevitáveis, porque a instituição não tem qualquer tipo de interesse que cá fora se tenha consciência dos custos reais do multilinguismo. O secretário que assim aumenta as cifras pode confiar na sua impunidade.


Um tradutor consciente não é capaz de traduzir, por dia, mais de cinco ou seis páginas A4, de espaço interliniar duplo, com precisão. Na ONU, o serviço mais rápido de tradução, o inglês, apresenta uma eficácia média de 2331 palavras/dia por cada tradutor (num total de 6,6 páginas de 32 linhas ou 4 páginas de 52 linhas), a secção chinesa, a menos rápida, tem uma produção média de 843 palavras (calculada sempre em função do número de palavras do texto original), a meio situa-se a secção francesa com 1517 palavras (2,65 páginas de espaço linear simples ou 4,3 páginas normais).(8)


O número de 7000 palavras/dia por cada tradutor, referido nos jornais pelo Conselho de Ministros da União Europeia (9), não é verosímil para quem conheça o serviço de tradução por dentro. Este número só seria atingível com uma qualidade tão fraca que, se fosse assim, o texto não seria utilizável e o dinheiro um gasto inútil. Isso infelizmente pode acontecer: como aconteceu com o Tratado de Maastricht. Este longo documento (253 páginas) que era verdadeiramente importante, porque definia a futura organização da União Europeia e sobre ele deviam votar todos os cidadãos dos Estados membros para decidirem da sua aprovação ou rejeição, teve que ser retirado das livrarias e bibliotecas, porque o conteúdo divergia de uma língua para outra. Foi necessário refazer o trabalho de começo e voltar a imprimi-lo. (10). Sobre o custo deste trabalho em duplicado, o público nunca foi informado.


A tradução é muito cara. Na rede de instituições da ONU a tradução em sete línguas de trabalho custava, já em 1978 (fora os “custos gerais”: secretaria, electricidade, papel, etc.), 1698 dólares americanos por 1000 palavras (11), isto é, mais de 1,5 dólares por palavra. Esta quantia, certamente inferior aos custos actuais, parece muito mais realista do que o de 0,36 dólares por palavra para a União Europeia, referido pelos jornais (12). Segundo a fonte, donde foram retirados estes números, a União Europeia traduziria por dia 3 150 000 palavras: a tradução custaria, portanto, 1 134 000 dólares por dia.


g) Tempo limite para a recepção de um documento em diversas línguas


Numa instituição multilingue os documentos têm de ser traduzidos e isso exige tempo. Este factor entra também na análise de cálculo dos diversos sistemas.


Na ONU e instituições a ela ligadas a produção em seis línguas de um original com 25 páginas A4, de espaço simples (14.000 palavras), precisa de 63,9 dias de trabalho para a tradução e 22,9 para a revisão (13). Se se juntar o tempo necessário para o dactilografar atinge-se um total de 98,8 dias de trabalho para aprontar o documento definitivo. Isso não significa, certamente, que o documento só estará disponível após cem dias; os tradutores das diversas línguas trabalham em paralelo e os textos urgentes são divididos por vários tradutores, como de resto se faria para um texto muito mais longo do que aquele que é tomado como exemplo. Também o dactilografar se faz simultaneamente para as diversas versões. Contudo, é útil consciencializar-se sobre a quantidade de esforço humano investido para um resultado de qualidade média: uma centena de dias de trabalho para comunicar o conteúdo de apenas 25 páginas, não raramente de modo imperfeito, não é de somenos. Não é de espantar que os serviços de tradução resistam a mostrar estatísticas precisas.


Segundo a minha fonte, se o texto não é urgente precisa de 24 dias para estar disponível em todas as línguas. Se é urgente, é dividido em várias partes e estará disponível em seis dias, aproximadamente.


Porque a demora resulta da natureza do próprio trabalho a traduzir pode-se supor que os números são análogos na União Europeia.


Na fórmula etnolingue (empresas multinacionais) e interlingue (esperanto) o documento está disponível imediatamente após ser redigido porque não são necessárias outras versões.


h) Perdas e distorções da informação


Uma comunicação só ocorre se o ouvinte ou o leitor do documento recebe uma versão exacta do que disse o falante ou autor. Em geral, o facto de passar de uma língua para outra causa alguns desvios entre o que expressa o original e o que, de facto, é passado para a outra língua. Nos sistemas etnolingue e interlingue não existem perdas ou deformações, porque os leitores e os ouvintes dispõem apenas de originais. Se há dúvida ou incompreensão, a causa não se encontra no regime linguístico, mas no domínio insuficiente da língua, por parte do interessado.


Pelo contrário, se se passa de uma língua a outra (por tradução ou interpretação), como nos sistemas oligolingue ou omnilingue, os riscos de erro multiplicam-se. Vimos acima que pelo método de estafeta, isto é, interpretação por meio de uma língua de apoio, a perda de informação atinge os 50%. Mesmo que a interpretação ocorra directamente da língua fonte para a língua final uma perda de 10% e distorções de 2 a 3 % são consideradas normais. As condições da interpretação simultânea são tais que ninguém consegue transmitir a fala dita sem falhas. Um intérprete deve não só ter uma boa dicção, um perfeito domínio das diversas línguas em que trabalha, uma mente perspicaz e um bom ouvido, mas deve também saber o suficiente sobre o tema tratado para poder seguir realmente o debate. Uma tal união entre competências especializadas e profundas competências linguísticas é raríssima. Disso resulta a grande proporção de intérpretes não suficientemente bons:


"O aumento das conferências plurilingues e a sua complexidade crescente, como se pôde observar nos últimos anos (...), teve como efeito fazer crescer a necessidade de dispor de um corpo competente de conhecedores de línguas e tornou a sua insuficiência mais incómoda. Com mais ou menos ênfase, conforme as instituições, as organizações que responderam ao nosso inquérito, declararam unanimemente que se torna cada vez mais difícil contratar intérpretes e tradutores competentes. Uma grande instituição acrescenta que «sempre foi difícil encontrar pessoal suficientemente qualificado em línguas, mas, nos últimos anos, por causa da multiplicação de reuniões em todas as organizações e pela falta de coordenação entre elas, frequentemente o problema é encontrar um número suficiente de intérpretes ou tradutores independentemente da sua capacidade»." (14)


"Várias organizações assinalam as dificuldades linguísticas ligadas com o carácter especializado de muitos temas tratados durante as reuniões (...). Numa instituição técnica os assuntos tratados tornam-se cada vez mais especializados e difíceis de compreender porque a ciência e suas aplicações progridem constantemente. Mesmo em contextos não técnicos levantam-se constantemente problemas de terminologia e apenas pessoas altamente qualificadas são capazes de os resolver. Estes factores juntam-se à dificuldade de contratar profissionais de língua qualificados." (15)


A tradução escrita é também vítima de erros, que mais não seja porque os tradutores, com frequência, trabalham sob pressão (urgência na tradução; trabalho nocturno; etc.). O acima referido sobre o Tratado de Maastricht mostra que mesmo os textos mais importantes não estão ao abrigo de distorções. A Carta das Nações Unidas apresenta outro exemplo. Se, em inglês, o artigo 33 se aplica a "any dispute, the continuation of which is likely to endanger the maintenance of international peace and security" ["todo o tipo de conflito, cuja duração fará provavelmente perigar a conservação da paz e segurança internacionais”], em francês trata-se de "tout différend dont la prolongation est susceptible de menacer le maintien de la paix et de la sécurité internationales" [“todo o tipo de desacordo cuja duração possa ameaçar a conservação da paz e segurança internacionais”]. Como o espanhol (que baniu a palavra any, "todo o tipo de": "una controversia cuya continuación sea susceptible de poner en peligro"...) o francês prevê uma simples possibilidade, quando o inglês fala de probabilidade, algo bem diferente. (O dicionário Webster define likely como "of such a nature or so circumstanced as to make something probable"). A variante é muitíssimo importante se se considerar que esta expressão define se o Conselho de Segurança tem ou não o direito de iniciar os preparativos para resolver o conflito. Os restantes textos não clarificam melhor a tarefa do Conselho: o russo usa a expressão могло бы, que significa "poderia", enquanto o chinês usa a palavra 足以 zúyì, que significa "suficientemente para". As diferentes versões deste texto, com igual validade jurídica, apresentam uma gama que vai de “suficiente” a “provável”, passando por “possível”.


Se até textos jurídicos com tal importância contêm erros ou duplos sentidos, que dizer de textos menos importantes! Em documento da União Europeia pode-se encontrar uma referência a des avions sans pilote qui prennent pour cibles les centrales nucléaires ["aviões não pilotados que tomam por alvo as centrais nucleares"], quando de facto o original refere apenas aviões não pilotados que, dirigidos automaticamente, sobrevoam centrais nucleares (16). Serão tais imperfeições permissíveis, tendo em conta os enormes custos de tradução?


O sistema de estafeta poderia causar tal tipo de erro, potencialmente perigoso. Este sistema, acima referido em relação à interpretação simultânea de debates, usa-se também em tradução de texto. Na União Europeia a tradução para lituano de um texto grego ou para português de um texto esloveno é de facto uma tradução a partir da versão inglesa ou francesa. Este procedimento é cada vez mais utilizado, desde que línguas como o húngaro, o estónio ou o checo são usadas, o que acarreta o aumento do número de erros de tradução. A relação custo/eficácia evolui portanto de modo desfavorável paralelamente ao aumento de línguas: quanto mais línguas, tanto mais altos são os custos e menos eficaz é o trabalho de tradução.


i) Frequência e gravidade de um défice linguístico


A expressão “défice linguístico” refere-se aqui à totalidade dos aspectos da língua estrangeira que impedem uma expressão fluente, falada ou escrita. Por outras palavras, quanto maior o défice linguístico, tanto menor a fluência. Quem se exprime na própria língua não experimenta um défice linguístico. Contrariamente, aqueles que não dominam perfeitamente a língua da reunião procuram as palavras certas, substituem uma palavra ou conceito por um termo menos adequado, mas sobre o qual estão gramaticalmente certos, exprimem-se por frases mais cruas do que utilizariam na própria língua, resignam-se a não usar um certo número de subtilezas, por vezes muito importantes, e a sua expressão tem menos força do que se usassem a língua materna. Para além disso, têm com frequência uma estranha maneira de pronunciar que pode provocar confusões ou torná-las ridículas (dizer "My government sinks", "O meu governo afunda-se", quando se pensa estar a dizer "my government thinks", "o meu governo pensa...", é um efeito de défice linguístico, a que está praticamente imune aquele que usa a sua língua materna). Semelhante défice existe também ao nível da escrita, se bem que nesta seja mais facilmente ultrapassável, porque o redactor tem, habitualmente, mais tempo para pensar, não se encontra no meio de um impressionante círculo de pessoas, e dispõe de livros de referência - dicionários, gramáticas - para fazer o controlo, em caso de dúvida.


O Parlamento Europeu reconheceu como é difícil usar a língua de outro:


"Quem já se esforçou por aprender uma língua estrangeira sabe que um verdadeiro multilinguismo é pouco frequente. Em geral, a língua materna é a única cujas subtilezas se dominam plenamente. Não há dúvida que se é politicamente mais forte quando se fala a própria língua. Exprimir-se na própria língua dá vantagem sobre aqueles que, querendo ou não, foram obrigados a usar uma outra língua." (17)


Facilmente se compreende, portanto, que quando o ministro francês dos assuntos europeus, Sr. Alain Lamassoure, anunciou, a 14 de Dezembro de 1994, que a França aproveitaria a sua presidência da União para propor a redução das línguas de trabalho a cinco, a reacção tenha sido imediata. O governo grego protestou vigorosamente; a imprensa de Atenas falou numa «Europa a duas velocidades, mesmo na língua” (18). Se aceitarmos com seriedade o dever imperativo de funcionar de forma justa e democrática, o défice linguístico é certamente o factor mais importante que todo e qualquer estudo, que compare as diversas opções possíveis na prática para ultrapassar as barreiras linguísticas, deve considerar.


Este défice é sobretudo grave no sistema oligolingue (ONU, etc.), onde a maior parte dos delegados ou congressistas deve exprimir-se em língua estrangeira. Actualmente não existe défice linguístico nos principais órgãos da União Europeia, mas se, como muitos propõem, se vier a reduzir o número de línguas de trabalho, isso atingirá uma boa proporção de representantes estatais e cidadãos.


O défice linguístico pertence à esfera da neuropsicologia. Causa-o tudo o que impede o normal funcionamento do sistema nervoso na expressão de uma ideia. Toda a língua representa uma rede de programas complexos, no sentido informático do termo, com frequência contrariados por subprogramas inibidores. Se se pergunta a alguém, que durante anos estudou a língua inglesa, como se diz "ovelhas" nessa língua, nove em dez respondem "sheeps" em vez da forma correcta "sheep". O erro emana do facto de que a palavra "sheep" deve normalmente evocar o subprograma "não aplicar o programa geral: "plural → +s". Mas a maioria das pessoas que aprendem inglês (ou outra língua qualquer) não consegue conservar activo, nas suas estruturas cerebrais, o aterrador número de subprogramas que deve armazenar para se exprimir sem erro numa língua diferente daquela que usa no seu meio.


Esta complexidade é a razão pela qual são necessárias um mínimo de 10.000 horas de estudo e prática para dominar completamente uma língua nacional. O leitor que considere este número exagerado observe a linguagem de uma criança de seis-sete anos, falando a própria língua. Embora as horas de imersão completa na língua materna supere as 10.000, ela ainda comete muitos erros. O seu vocabulário contém abundantes formas não regulares, como faz uma criança de língua francesa quando diz, vous disez, s'il voudrait, plus bon, une chevale, la jouetterie [as formas correctas são vous dites, s'il voulait, meilleur, une jument, le magasin de jouets]. Numa criança dos EUA da mesma idade aparecem formas como I comed, foots, it's mines, when he'll go [correctas seriam I came, feet, it's mine, when he goes]. Dez mil horas aproximadamente não bastam para ensinar o uso correcto da língua. É incorrecto atribuir estes erros à pouca idade dos jovens. Nenhum dos seus desajustamentos linguísticos radica na imaturidade do intelecto, antes pelo contrário: a criança é mais lógica do que a língua oficial. Os erros emanam apenas do facto de que os subprogramas que deviam inibir os programas gerais ainda não estão instalados ou estabilizados nas correspondentes estruturas cerebrais.


Noventa a noventa e cinco por cento do tempo dedicado ao estudo da língua consiste em memorizar subprogramas que se destinam a inibir os programas normais. Mas estes subprogramas devem ser memorizados como reflexos: enquanto não funcionarem automaticamente, sem esforço, sem reflectir, a língua não está dominada. O cérebro humano tem a tendência de aplicar o programa geral a todo o signo associado a um significado. Por esta lei universal, o funcionamento natural do cérebro faz com que alguém, que, por exemplo, não tenha o português por língua materna, verbalize o conceito de “irresolúvel” pela inadequada palavra irresolvível. Para falar português de modo adequado deve-se bloquear o caminho natural do fluxo nervoso por um sinal de “caminho vedado” e instalar o desvio conducente à forma correcta irresolúvel. Do mesmo modo a criança que diz mais bom apercebe-se do signo mais, que se encontra em «mais alto, mais baixo, mais forte, mais quente» e generaliza-o. Ele ainda não instalou o sinal de trânsito “caminho vedado” que bloqueia mais bom, com desvio para melhor (forma correcta de exprimir este conceito em português).


Uma língua livre de subprogramas inibidores, contendo apenas programas gerais (por exemplo, apenas um programa para o plural, apenas um programa para o tempo presente do verbo, apenas um programa para derivar adjectivos de substantivos, etc.), respeita sem limitação a tendência natural para generalizar os dados adquiridos. Por isso se adquirem rapidamente e sentimo-nos em casa com eles. Assim é o Esperanto. Um aprendiz de inglês não pode generalizar o programa "profissão: → + er", mesmo tendo deduzido de "farm farmer"," report reporter" que ali parece funcionar uma regra. É-lhe impedido formar " fish fisher" (diz-se fisherman), bem como " tooth toother" (diz-se dentist). Em relação à escrita não pode formar "translate translater"; escreve-se "translator". Pelo contrário em esperanto nunca se deve reprimir a aplicação espontânea do programa geral perante um sinal observado. De facto as formas farmo → farmisto, raporto → raportisto, fiŝo → fiŝisto, dento → dentisto, traduki → tradukisto são apenas uma pequena parte de um série sem fim. Seja qual for o campo a que respeite, as pessoas exprimindo-se nesta língua sabem que podem formar o nome da profissão com o morfema -isto. Esta certeza traz, quando nos exprimimos, um sentimento de segurança que distingue radicalmente o esperanto de toda a língua estrangeira. A regularidade e o sentimento de segurança eliminam o défice.


Para além disso, quem faz uso do esperanto goza de grande liberdade na construção da frase. Para exprimir a ideia do inglês he helps me, do francês il m'aide, do alemão er hilft mir, ou do português ele ajuda-me, o esperantista pode seguir a estrutura inglesa: li helpas min, a francesa: li min helpas, ou a alemã e portuguesa: li helpas al mi. Um século de uso provou que esta liberdade elimina o desconforto linguístico sem perturbar a compreensão mútua. Uma liberdade semelhante proporciona a flexibilidade da gramática. Para exprimir a ideia “ele foi para o hotel de autocarro” o falante de esperanto dispõe de uma gama de verbalizações das quais muitas não têm equivalência noutras línguas, embora elas sejam imediatamente compreensíveis, se se aprendeu o significado das terminações e das proposições: li iris al la hotelo per buso, hotelen li iris buse, al la hotelo li busis, li buse alhotelis, ktp.


A liberdade de construção frásica e o direito de generalizar sem barreiras cada estrutura, quer gramatical quer lexical, cria fluência: quem se exprime pode tranquilamente fiar-se no funcionamento natural do cérebro e não deve, como noutras línguas, gastar uma quantidade considerável de energia nervosa por não ter a certeza, ou para vasculhar a sua memória, frequentes vezes sem sucesso, em busca da palavra certa ou da regra gramatical, que quase foge quando se precisa dela. Por isso, como diz o Prof. Pierre Janton:


"Embora não seja uma língua materna não é contudo uma língua estrangeira. Um utilizador maduro nunca sente o esperanto como uma língua de outro país." (19)


Estes pormenores clarificam imediatamente os factos observáveis quando nos encontramos em reuniões internacionais em esperanto: nesta língua o défice linguístico praticamente desaparece. Às causas linguísticas e neurológicas deste fenómeno junta-se um factor puramente psicológico, o facto de que o utilizador do esperanto sabe que nenhum dos seus interlocutores usa a sua própria língua, e que não existe povo que possa ditar arbitrariamente o que é aceitável ou não no modo de exprimir-se. Em consequência, os falantes nunca se sentem inferiores pelo facto de não pertencerem ao povo que definiu as normas. Disso resulta que a vivência subjectiva se diferencia muito do que acontece nos sistemas oligolingue e etnolingue, nos quais quem usa uma língua diferente da sua, sempre se sente de alguma forma inferior (excepto se é demasiado arrogante para ter consciência do seu nível real, possivelmente não muito alto, o que também não é raro nos meios internacionais).


Os participantes duma reunião em esperanto exprimem-se fluentemente e aí não se nota correlação entre a língua e a frequência de pedir a palavra. Por isso, embora cada um use uma língua aprendida após a primeira infância, um observador tem a sensação de se encontrar num meio que fala a sua língua materna. Possivelmente este é o traço que mais distingue o sistema interlingue dos restantes três sistemas que são geralmente aplicados à comunicação entre falantes de línguas diferentes.


j) Défice linguístico na leitura


A leitura de documentos desempenha um vasto papel em actividades internacionais. Há uma grande diferença entre a compreensão auditiva e a leitura. A pontuação para este critério, abaixo atribuída, representa uma média: foi a única maneira de considerar as grandes diferenças entre as pessoas, consoante a profundidade do seu domínio da língua na qual recebem os documentos.


No sistema oligolingue muitos delegados recebem os documentos numa língua que lêem sem grande problema mesmo que a falem deficientemente. Que a pontuação, exprimindo a dimensão das desvantagens na tabela aqui posta, seja mais alta para o sistema monolingue, isso esclarece-se pelo facto de que, segundo diversos inquéritos, a duplicidade de sentidos do inglês provoca com frequência incompreensões. Por exemplo "Soviet expert" e "English teacher" são frequentemente compreendidos por não anglófonos como “especialista soviético”e "professor inglês", quando podem também significar "especialista não soviético sobre assuntos soviéticos”e "professor não britânico de inglês ". Igualmente "Japanese encephalitis vaccine" será muitas vezes compreendido como "vacina japonesa contra a encefalite" e não como "vacina contra a encefalite japonesa", que é a tradução exacta. Em esperanto, o outro sistema monolingue entre aqueles que estão correntemente em uso, não são necessárias mais sílabas para exprimir estes dois conceitos, mas evita-se a duplicidade de sentidos e a equivocidade: em "japana encefalit-vakcino" e "japan-encefalita vakcino" é imediatamente claro, para quem aprendeu o sentido das terminações, de que tipo de vacina se trata.


A rapidez de evolução do inglês e a tendência dos autores de língua inglesa para usar expressões calão, mesmo em textos políticos ou técnicos, levanta problemas para os não anglófonos que as outras línguas não levantam em igual grau. Num inquérito recente, 80% dos inquiridos, embora usando regularmente o inglês na sua vida profissional, não compreendiam a frase "Business class is a tough act to follow" num artigo do International Herald Tribune sobre o desinteresse dos passageiros de avião para voar em primeira classe.


k) Limitações e incómodos


Por “limitações” compreende-se aqui os factores limitadores da liberdade, próprios do regime da língua escolhida. Os sistemas oligolingue e omnilingue, por exemplo, obriga a ter lugares equipados para uma interpretação simultânea, enquanto com os sistemas monolingue e interlingue a discussão pode ocorrer num restaurante, pavilhão de caça ou durante um passeio junto ao rio, com eficácia igual à de um salão de conferências; de igual modo, pode ocorrer em qualquer momento, mesmo quando falta a electricidade. Uma reunião que use um destes dois sistemas pode ser efectuada em qualquer lado sem grandes custos. Por contraste, se um órgão da ONU ou instituição semelhante aceita o convite de um Estado para reunir no seu país, a despesas crescem consideravelmente: é necessário transportar uma multidão de gente, mais os equipamentos imprescindíveis para a produção de documentos nas diversas línguas, e prever os custos ligados a viagens e permanência dos membros do serviço linguístico.


Por “incómodos” compreende-se aqui os aspectos da situação comunicativa que contrariam o conforto, a qualidade de vida. Muitos participantes de reuniões internacionais acham desagradável ser obrigados a usar auscultadores todo o dia e ouvir uma voz diferente da do orador. Cansámo-nos mais se participamos em reuniões com interpretação simultânea do que em reuniões unilingues. Neste critério está incluído também o dever esgotante de participar numa discussão numa língua que não se compreende perfeitamente e em que a pronúncia dos vários participantes perturba uma fácil compreensão, o que acarreta nos ouvintes um grande desgaste no acompanhamento dos trabalhos.


l) Provável agravamento das desvantagens nos próximos vinte anos


Os sistemas monolingue e interlingue não se arriscam, pela sua própria natureza, a um aumento dos inconvenientes. Mas a situação é muito diferente quando o plurilinguismo é usado. Nenhuma das instituição que estamos a considerar tomou de início a decisão de fixar um limite para o número de línguas que se podem tornar oficiais. Portanto, o seu regime linguístico difere, em muito, do que existe em Estados multilingues. As desvantagens multiplicam-se imediatamente quando se aumentam o número de línguas usáveis. Juntar uma língua não significa acrescentar uma unidade, mas multiplicar o número de combinações linguísticas, para as quais se deve prever a necessidade de traduzir e interpretar; esse número corresponde à fórmula N (N-1). Se se usam 6 línguas, como nas Nações Unidas são precisas 30 combinações, se forem 23, como na União Europeia actual (ano 2007), estamos perante 506 combinações, quer para as intervenções orais, quer para documentos e correspondência.


O agravamento das desvantagens afecta principalmente a União Europeia que se encontra perante um drama alternativo: proteger a democracia com custos dificilmente sustentáveis de aumento de complicações e orçamento, ou escolher um funcionamento mais normal, administrativa e financeiramente mais aceitável, mas pernicioso para a democracia.


Desde a adesão de dez novos membros, em 2004, os problemas linguísticos cresceram, até se tornarem dificilmente administráveis. Após a sua fundação, a ONU e as instituições a ela ligadas seguiram o mesmo caminho: pouco a pouco aumentaram o número das línguas de trabalho. Embora as complicações se agravem com cada nova língua entrada, o processo, contudo, não parece vir a parar: muitos reclamam um aumento do uso do alemão, já em parte usado como língua de trabalho, e um grupo de pressão muito activo esforça-se para que o português, o hindu e o japonês recebam um estatuto oficial.


m) Problemas terminológicos


Após profundo exame do problema foi decidido não incluir este critério. É de facto dificílimo avaliar a influência nos diversos regimes linguísticos deste aspecto da comunicação internacional.


Na ONU a falta de uma terminologia precisa e estável ocasionou sérios problemas na secção chinesa, nos anos cinquenta. “Você traduz, nós criamos uma língua” disse um revisor dessa secção ao autor deste relatório de investigação, em 1960. O mesmo tipo de dificuldades reapareceram quando se oficializou o árabe, nos anos setenta.


Na UE dificuldades semelhantes, embora menos graves, ocorreram provavelmente em relação à terminolgia holandesa, se considerarmos as diferenças que apresentam as versões belga e holandesa, e também a instabilidade do seu léxico na época em que os Estados fundadores subscreveram o Tratado de Roma, mas não foi possível obter informação sobre isso. Também o grego moderno era uma língua não estável, quando a Grécia aderiu à União, e seria interessante saber como o serviço de tradução grego enfrentou a situação. Também a adesão dos países ex-comunistas terá, muito provavelmente, criado alguns problemas terminológicos.


Se uma instituição interestatal adoptasse o esperanto deveria estabelecer para esta língua um serviço terminológico relativamente extenso. Sim, de facto, em muitas esferas políticas, sociais, científicas e técnicas a terminologia do esperanto é mais velha do que a do árabe, do chinês ou de outras línguas, como o hebreu ou o swahili; para além disso, a estrutura da língua possibilita resolver problemas terminológicos mais facilmente do que em muitas línguas (o esperanto tinha o equivalente a «software» antes do Conselho de língua francesa pensar em “logiciel”). A terminologia esperanto porém apresenta muitas falhas no modo preciso de nomear diversos elementos de máquinas, aparelhos, instrumentos de trabalho e outros equipamentos, sucessões de procedimentos técnicos, conceitos finamente detalhados nos campos da indústria, engenharia, medicina, farmácia e muitos outros. De igual modo, a terminologia esperanto ainda não está fixada para algumas subdivisões muito exactas de categorias de produtos que são objecto de intercâmbio comercial ou para diversas precisões qualitativas que permitem uma caracterização em conformidade com normas específicas. Existe uma tradição de aproximadamente um século para produzir estes termos através do consenso de especialistas, e bastaria oficializá-lo e desenvolvê-lo, mas o trabalho a cumprir em relação a isto seria considerável. Porém, não seria superior ao que a secção chinesa da ONU teve de fazer nos anos cinquenta e sessenta.


Notas acerca das reuniões em esperanto


As observações feitas no âmbito desta investigação facilmente se mostraram correctas para os três primeiros sistemas (o oligolingue, o etnolingue e o omnilingue) cujo funcionamento é fácil de analisar. Mas sobre o esperanto muitas fontes são parciais e partidárias. Muitos olham este instrumento de comunicação como um projecto, embora se trate de facto duma língua efectivamente usada. A maioria dos leitores não saberá provavelmente que o funcionamento desta língua pode ser científica e objectivamente estudado. Por isso faço esta observação.


De facto o esperanto, embora limitado a uma fracção muito marginal da humanidade, é diariamente usado em todas as regiões do nosso planeta. Desde Janeiro de 1985, não há um único dia em que a língua não seja usada algures em qualquer parte do mundo, como língua de um encontro internacional, estágio, reunião ou congresso. (20)


Este estudo baseia-se, no que ao esperanto diz respeito, na observação de reuniões que ocorreram sob os auspícios das seguintes organizações ou instituições: Associação Universal de Esperanto, Feira Literária, Organização Mundial da Juventude Esperantista, Centro Cultural Esperantista, Instituto Japonês de Esperanto, Museu Internacional de Esperanto e Serviço Cultural Internacional. O estudo foi feito em dois períodos, o primeiro, em 1986-87, em Pequim, Tóquio, Locarno, S. Francisco e Zagreb, e o segundo, em 1993-94, em Barcelona, Novosibirsk, La Chaux-de-Fonds e Viena. Reuniões informais em Otava, Oslo, Budapeste e Helsínquia confirmaram as observações feitas nas conferências preparadas. Apenas as reuniões, nas quais participaram pessoas com pelo menos cinco diferentes línguas maternas foram tomadas em consideração.


No que respita ao uso escrito da língua, a investigação baseou-se em correspondências, documentos e publicações de algumas das instituições referidas anteriormente, principalmente no Centro Cultural Esperantista e Associação Universal de Esperanto.


Os temas tratados em língua esperanto nestas organizações foram muitíssimo diversos, dos mais gerais aos mais específicos, tal como o que ocorreu nas organizações que linguisticamente funcionaram noutro modelo.


Balanço dos quatro sistemas


Nas condições actuais, não é possível recolher números precisos para cada critério acima apresentado. Muitos dos dados não são objectivamente quantificáveis. Os números abaixo são portanto simples avaliações resultantes da observação do funcionamento da língua em diversas instituições, ou, por exemplo para dados como os respeitantes ao tempo necessário para adquirir a língua a usar, a partir de inquéritos realizados junto de camadas, estatisticamente representativas, dos participantes em reuniões internacionais.


Os pontos foram atribuidos a cada critério, numa escala de dez unidades, segundo a gravidade da desvantagem: 0 indica que não existe qualquer desvantagem no respectivo regime línguístico, e dez, que ela é muito grave. A escala distribuia-se assim : 0 nula, 1 quase nula, 2 negligenciável, 3 fraca, 4 moderada, 5 média, 6 considerável, 7 importante, 8 muito importante, 9 muitíssimo importante, 10 máxima.


A tabela seguinte resultou da análise dos quatro sistemas:


Criterio U.N. Multinationals European Union Esperanto
a) duração de aprendizagem anterior (indivíduos) 8 8 0 3
b) investimento anterior dos Estados 9 9 5 0
c) investimento anterior da organização 8 0 10 0
d) desigualdade ou discriminação 6 5 0 0
e) despesa de interpretação 7 0 10 0
f) despesa com documentos 6 0 10 0
g) tempo para preparar documentos 6 0 6 0
h) perda ou desajuste de informações 5 4 6 0
i) gravidade de défice linguístico 5 6 0 1
j) problemas de compreensão durante a leitura 3 4 0 1
k) limitações e incómodos 8 3 8 0
l) aumentos futuros de desvantagens 5 0 10 0
Total das desvantagens 76 39 65 5

Os números acima apresentados são avaliações que a maioria dos leitores julgará sem dúvida pouco fiáveis, por ausência de base suficientemente objectiva. Por isso, é interessante observar que se substituir esta notação décupla por uma notação dupla (1 = há desvantagem; 0 = não há desvantagem), ainda assim a fórmula mais favorável é a quarta, se bem que esta forma de cálculo a desfavoreça grandemente. Efectivamente, se apenas seis meses de aprendizagem de esperanto dão capacidade de comunicação, quando para outra língua são precisos seis anos, dar a mesma pontuação (1) a todos os sistemas que impõem a aprendizagem de uma língua, é falsear a realidade. Mas este tipo de cálculo anula, pelo menos, a crítica razoável sobre a subjectividade da avaliação. Esta observação permanece válida mesmo que se abandone o investimento estatal (critério b) da coluna omnilingue para o passar para a coluna interlingue (isso pode ser justificado pelo facto de que, se este último sistema fosse adoptado, os Estados poderiam sentir-se obrigados a organizar o ensino escolar do esperanto).


Eis os quatro sistemas comparados pela notação binária:


Criterio U.N. Multinationals European Union Esperanto
a) duração de aprendizagem anterior (indivíduos) 1 1 0 1
b) investimento anterior dos Estados 1 1 0 1
c) investimento anterior da organização 1 0 1 0
d) desigualdade ou discriminação 1 1 0 0
e) despesa de interpretação 1 0 1 0
f) despesa com documentos 1 0 1 0
g) tempo para preparar documentos 1 0 1 0
h) perda ou desajuste de informações 1 1 1 0
i) gravidade de défice linguístico 1 1 0 1
j) problemas de compreensão durante a leitura 1 1 0 1
k) limitações e incómodos 1 1 1 0
l) aumentos futuros de desvantagens 1 0 1 0
Total das desvantagens 12 7 7 4

Quem observa como funcionam os quatro sistemas usados actualmente por falantes de diferentes línguas para se compreenderem uns aos outros, constata que o que apresenta o máximo de vantagens e o mínimo de desvantagens, tanto para os participantes individuais como para os Estados e instituições, é o interlingue, pelo menos na concretização “esperanto”. Por outras palavras, ele é, com o sistema etnolingue, aquele em que a relação eficácia/custo é mais favorável. Mas, em comparação com o etnolingue, ele mostra duas importantes vantagens: por um lado evita todo o tipo de discriminação e desigualdade, e, por outro, conduz ao desejado nível de competência linguista num tempo claramente mais curto (aproximadamente dez vezes).


Contudo, este sistema defronta-se com uma grave desvantagem, até agora não referida: a sua adopção não pode apoiar-se em nada já existente, excepto em algumas organizações privadas ou não governamentais. Em si mesmo, isso não seria uma verdadeira dificuldade, dadas as qualidades linguísticas do meio de comunicação e da sua notável adaptação ao funcionamento espontâneo do cérebro. Mas o problema da escolha do melhor sistema de comunicação situa-se num contexto em que todo um conjunto de forças políticas, sociais, culturais e económicas favorecem a inércia e a conservação de privilégios, e desfavorecem uma mudança radical conducente a uma solução mais democrática e com melhor relação qualidade/preço. As pessoas capazes de atingir um verdadeiro domínio do inglês são muitíssimo poucas se compararmos com o número de habitantes da Terra, contudo a tendência dos últimos anos foi para a adopção do sistema etnolingue, baseado no uso exclusivo de uma língua. O que criou uma elite de modo nenhum interessada em perder as vantagens que usufrui da sua pertença ao pequeno grupo de pessoas capazes de participar na vida internacional.


Porque a situação é esta, pode-se com razão juntar dois critérios à tabela acima. Trata-se de duas desvantagens: “organização do ensino do esperanto no mundo” e “ necessidade de vencer a força da inércia”. É interessante constatar que se avaliássemos estes dois critérios como tendo o máximo de desvantagens no sistema interlingue (10 pontos) e o mínimo nos três outros (0 pontos) o total das desvantagens para o sistema interlingue (esperanto) passaria de 5 para 25, mas ainda assim situar-se-ia num nível suficientemente baixo em relação ao das outras três opções (sistema oligolingue 76, etnolingue 39 e omnilingue 65). A situação relativa dos diversos sistemas permanece inalterada se aplicado à notação binária. Não obstante a adição de 2 pontos ao número de desvantagens, a opção interlingue continua a mais interessante.


Não valeria a pena ter estes resultados em mente quando se debate o regime linguístico mais desejável para a comunicação à escala internacional?


___________
1. De facto, até mesmo num país germanófono esta pequena proporção mostra-se correcta. Numa investigação em Hanover (Alemanha), fez-se o controlo do nível de inglês de 3700 estudantes universitários que aprenderam inglês durante oito ou dez anos. Apenas 37 (1%) cumpriram os critérios que permitiam classificá-los como tendo «muito bom domínio da língua inglesa», e só 148 (4%) podiam ser classificados em «bom domínio». (Uni&Job, Süddeutsche Zeitung, 21 de Outubro de 2006, p. 20).
2. Se a passagem a outra língua ocorre na escrita, usa-se a palavra traduzir; se na fala, usa-se interpretar. A razão para usar termos diferentes, radica na diferença de exactidão. A tradução (escrita) deve necessariamente espelhar sem falhas o sentido do texto original, incluindo todas as subtilezas; na interpretação (fala) considera-se normal uma comunicação mais ou menos imperfeita e com falha de pormenores.
3. Genebra, 1 de Novembro de 1995 (Radio Suisse Romande, La Première, 07:51).
4. Jyllands Posten, 14 de Janeiro de 1994; Sprog og erhverv, 1, 1994.
5. Claude Piron, O desafio das línguas - Da má gestão ao bom senso (Campinas: Pontes Editores, 2002), pp. 64-66. Consultável também na nete (p. 49-51) em: http://claudepiron.free.fr/livres/desafiodaslinguas.pdf
6. C. E. King, A. S. Bryntsev et F. D. Sohm, Incidence de l'emploi de nouvelles langues dans les organismes des Nations Unies, (Genebra: Corps commun d'inspection, Palais des Nations, 1977, dokumento A/32/237), par. 93.
7. Liga das Nações, L'espéranto comme langue auxiliaire internationale. Rapport du Secrétariat général, adopté par la Troisième Assemblée (Genebra: SDN, 1922), p. 22. A Liga das Nações usou duas línguas, o inglês e o francês.
8. Evaluation of the Translation Process in the United Nations System (Genebra: Joint Inspection Unit, Palais des Nations, 1980, documento JIU/REP/80/7), tabela 9. As palavras "secção inglesa" referem-se à unidade de tradução encarregada de preparar a versão inglesa dos originais escritos em todas as outras línguas.
9. Roman Rollnick, "Word mountains are costing us a fortune", The Eŭropean, 20-22 de Dezembro de 1991, p. 6.
10. "Un texte mal traité", Nord-Éclair, 30 de Abril de 1992.
11. Evaluation of the Translation Process ...[documento citado anteriormente (nota 7), mesma tabela]. São palavras do original.
12. Roman Rollnick, "Word mountains are costing us a fortune", The European, 20-22 de Dezembro de 1991, p. 6.
13. Evaluation of the Translation Process... .[documento citado anteriormente (nota 7), mesma tabela].
14. C. E. King, A. S. Bryntsev, F. D.Sohm, Report on the implications of additional languages in the United Nations system, Genebra: Joint Inspection Unit, Palais des Nations, 1977, par. 89.
15. mesmo local, par. 94.
16. Citado por Jean de la Guérivière, "Babel à Bruxelles", Le Monde, 12 de Janeiro de 1995, p. 15.
17. Eŭropa Parlamento, Rapport sur le droit à l'utilisation de sa propre langue, 22-a de marto1994, A3-0162/94, DOC.FR/RR/249/249436. MLT PE 207.826/déf., p. 10.
18. Jean de la Guérivière, "Babel à Bruxelles", Le Monde, 12 de Janeiro de 1995, p. 15.
19. Pierre Janton, "La résistance psychologique aux langues construites, en particulier à l'espéranto", Journée d'étude sur l'espéranto (Paris: Université de Paris VIII, Institut de linguistique appliquée et de didactique des langues, 1983), p.70.
20. Uma lista incompleta das reuniões que se desenrolam em esperanto encontra-se em: http://www.eventoj.hu/kalendaro.htm


Tradução: Luís Ladeira
Dezembro 2007