Claude Piron

Confissão de um louco


Pede-se um testemunho, e apesar de isso me envergonhar - a loucura é uma doença que causa vergonha - eu decidi oferecê-lo, embalado em meu próprio delírio, na doce ilusão de que ele poderia ser útil. Eu sou louco. Como um bom número de meus congêneres, eu não me dou conta absolutamente disso; minha maneira de ser me parece coerente e “cola” muito bem à realidade. Mas o julgamento das pessoas sãs de espírito é praticamente unânime: o que posso fazer é apenas aceitá-lo.


Uma doença contraída na infância


Tudo começou na minha infância: eu aprendi o xxxxx. Essa língua me pareceu tão atraente, tão divertida, tão maravilhosa, que rapidamente eu consegui dominá-la (isso não é algo excepcional, toda pessoa que sofre do mesmo mal alcança o mesmo nível linguístico no mesmo espaço de tempo). Nos primeiros anos, eu não tomei conhecimento de nada, mas um dia, traduzindo, em classe, um texto grego, nós nos deparamos com uma forma verbal bizarra, eu disse ao professor: “É talvez um interrogativo-imperativo?”. O venerável mestre pacientemente me explicou que eu misturava duas noções contraditórias e que minha hipótese era absurda. Eu repliquei: “Mas isso existe em xxxxx, onde é comum se dizer kien ni iru?, e que não tem equivalente em francês. Ni iru significa Allons! [Vamos!] (imperativo, primeira pessoa do plural) e kien, em qual direção, onde. Se podemos dizer Allons-y, por que não poderíamos dizer Allons où?”.(1) O professor me recolocou no meu lugar, explicando que o xxxxx era somente um código sem vida, ao qual não era necessário exigir as explicações válidas para as verdadeiras línguas.


No ano seguinte, eu contava a alguns amigos, na presença de um professor, uma conversação que se desenrolou em xxxxx. O professor interveio: “Ora vamos, não se vanglorie, o xxxxx não é uma língua, pode-se vagamente escrever em xxxxx, mas não poderíamos jamais falá-lo”. Foi então que eu comecei a tomar consciência do meu estado. Se pessoas simpáticas, inteligentes, honestas, instruídas, que eu respeitava espontaneamente (eu tive a chance de ter ótimos professores) eram unânimes em demonstrar que minha experiência era falsa, é porque ela era falsa. A conclusão se impunha: eu delirava.


Delírio como esse tem todo tipo de consequências lamentáveis. Um dia, na escola primária, eu disse descer para baixo, e o mestre me fez notar: “O francês é uma língua lógica: a gente diz simplesmente descer, porque isso já é o suficiente”. Quando eu concluí daí que era preciso dizer apenas velho mulher, para evitar repetir no adjetivo a noção de feminino implícita na palavra “mulher”, disseram-me que eu era um garoto travesso. Isso nos acontece frequentemente, a nós, doentes mentais: toma-se por travessura aquilo que não passa de uma patologia.


Tendo assim aprendido que o francês era uma língua lógica, um dia eu perguntei por que a gente diz 20 places assises (20 vagas “sentadas”) concordando o particípio em gênero e número, e 20 places debout (20 vagas em pé) deixando invariável a palavra que qualifica (eu confesso, hoje, minha covardia: o que eu não me atrevia a dizer é que eu não via a lógica pela qual uma vaga conseguia se fazer sentar). Eu nunca compreendi a resposta que me deram, e guardo apenas uma lembrança confusa do episódio. Parece-me que era uma questão de eufonia.


A eufonia é um ingrediente fantasmagórico que dá às pessoas sãs de espírito - ai de mim, não eu! - a chave de muitos mistérios. Ela explica, por exemplo, porque se diz consulat de France, sem artigo, mas consulat du Danemark, com artigo [N.T.: um equivalente em português seria consulado de Cuba, sem artigo, e consulado da Dinamarca, com artigo]. É também a fada Eufonia que impede o emprego da terminação -asse do subjuntivo imperfeito. De forma ingênua, eu acreditava que se me ensinavam uma conjugação na escola, era para utilizá-la. É porque um dia, em uma peça de teatro que ensaiávamos, eu estava atrozmente maquiado, e me justificava dizendo: “Il fallait bien que je me grimasse”. Presenciei a fúria de meu instrutor, chamando por socorro a valiosa fada da Eufonia e a noção - que eu jamais pude compreender muito bem mais uma vez - de ridículo. Mas, depois de alguns minutos, disse ao diretor da peça: “C'est là que vous voulez que je grime?”, visto que eu não ousava dizer grimace que por sua vez não é eufônico, mais uma vez eu retorno a este ponto. Nem sempre é divertido ser louco.(2)


Mas ao todo, meu conhecimento em xxxxx trouxe mais benefícios que inconvenientes para um estudante medianamente dotado como eu. Ele me ofereceu, ao longo de minha vida escolar, uma vantagem sobre meus camaradas que jamais perdi. Eu conhecia muitas coisas em geografia, porque me correspondia na língua de Zamenhof com crianças do mundo todo e minhas leituras eram internacionais. Eu conhecia uma base de raízes germânicas que havia assimilado facilmente. Para um europeu que se aproxima do xxxxx, as palavras desconhecidas se encontram sempre situadas num conjunto que compreende certa proporção de palavras familiares: não se trata nunca de uma massa totalmente estrangeira a atacar. Consideremos palavras muito comuns como fenestro (fenêtre, janela), domo (maison, casa), strato (rue, rua). O francófono tem duas raízes a aprender (do qual uma pode ser, segundo a idade e a extensão do léxico pessoal, parcialmente conhecida pelas derivações tais quais domicílio), o inglês, duas raízes e o eslavo, duas raízes (casa se diz dom em russo e polonês, dum em tcheco).


Além disso, eu adquiri uma sólida noção de raízes latinas que me ajudaram muito a assimilar o vocabulário francês. Quando eu me deparei pela primeira vez com a palavra simiesco, eu rapidamente compreendi: simio quer dizer macaco em xxxxx. Quando me falaram de nervo crural, imediatamente associei a palavra comumente usada que designa a perna na língua de Zamenhof: kruro. E como, para mim, cabeça é também kapo, eu não tive nenhuma dificuldade em compreender o que havia de comum na família decapitar, capitão, capital...


Na minha loucura, eu sempre imaginei que havia uma relação estreita entre a linguagem e o pensamento, isto é, que a linguagem era uma ferramenta que ajudava a pensar. Curiosamente, essa concepção me foi confirmada quando eu fiz os estudos de psicologia. Em todo caso, eu sempre tive a impressão que o fato de aprender na infância uma linguagem que casasse flexivelmente todos os caminhos do pensamento era um trunfo que não se pode negligenciar. Eu sublinho “na infância”, porque me parece que estes que contraem a doença na idade adulta se habituam frequentemente a correr o pensamento nas molas rígidas da sua língua materna. Esse detalhe deverá ser verificado. Mas a questão que nos interessa aqui é saber por que o xxxxx segue melhor que outras línguas o movimento do espírito pensante. A resposta é fácil, porque ele respeita, sem nenhuma exceção, a principal das leis psicolinguísticas, aquela da assimilação generalizadora.


Uma tendência universal do espírito humano: a assimilação generalizadora


Um garoto de seis anos que conheci disse, na mesma semana, floreiro para “florista”, e jornaleiro para “jornalista”. Por quê? Porque ele espontaneamente assimilou o sufixo -eiro da série “açougueiro, padeiro, cozinheiro, sapateiro” e imediatamente o generalizou. E essa criança de 12 anos, na qual eu aplico uma gota de medicamento em seu olho inflamado e que me diz: “Vai desavermelhar rápido?”(3) o que faz ela, senão seguir a lei da assimilação generalizadora... e pecar contra a língua francesa. É que todas as línguas nacionais são ditadoras que exigem obediência em detrimento da espontaneidade e das necessidades da comunicação. Somente em xxxxx se poderia afirmar: a língua é feita para o homem e não o homem para a língua.


Alguns acham o inglês fácil. É que as pessoas sãs de espírito se esquecem dos pontos de referência. Um pobre louco como eu não compreende o que a comunicação ganha obrigando a dizer East Africa, mas Eastern Europe; injustice, mas unjust; I ski, I bicycle, mas não I car (enquanto que em xxxxx, nenhum problema:


skio = esqui, mi skias = eu esquio
biciklo = bicicleta, mi biciklas = eu ando de bicicleta
aŭto = carro, mi aŭtas = eu ando de carro, eu dirijo).


...Que permite ganhar, ao mesmo tempo, em simplicidade e precisão


Em uma língua onde a assimilação generalizadora não é inibida por nenhuma exceção, mas é, ao contrário, estimulada por toda a estrutura linguística, o ser pensante experimenta um sentimento de liberdade extraordinário. Nenhuma camisa-de-força. Quando você persegue uma ideia, as palavras estão lá para te servir.


Imagine que você conduz uma reflexão sobre os sentimentos e a estrutura familiares. Em francês, você poderia falar de um sentimento paternal, maternal, fraternal, amistoso. Mas e quando você chega ao tio? Em xxxxx, para formar um adjetivo, troca-se o -o final do substantivo ou o -i do infinitivo pela terminação -a. Se patro = pai, e frato = irmão, não há a necessidade de memorizar as palavras paternal e fraternal, elas se formam por si mesmas: patra, frata. O sentimento que um tio experimenta por seu sobrinho tem alguma coisa de muito particular, bem diferente se nos referimos ao sentimento paternal ou amistoso. Em xxxxx, não há necessidade de refletir: onkla sento é a expressão que nos falta. A palavra avuncular existe em francês, mas será que ela chega ao seu espírito em uma fração de segundo, como um reflexo, na mesma velocidade que o seu pensamento? E o sentimento de avô, não é ele também específico? Grand-paternel(4) não existe em francês. Em xxxxx, avô = avo e o adjetivo correspondente é, evidentemente, ava. Substitua -a por -e e você terá o advérbio.


Quando eu era criança, me correspondi com um jovem que, durante certo período, terminava as cartas escrevendo, abaixo da assinatura, o simples advérbio kuze, “primoamente”. A palavra intraduzível exprime uma ideia muito clara: “eu te envio saudações que exprimem os sentimentos que a gente tem nas relações primo-a-primo”. A evolução, com o tempo, de sua forma de tratamento mostra bem a evolução de nossas relações: no início, ele escrevia samideane (sam- = mesmo, ide- = ideia, -ano = participante, membro, habitante, pessoa que adere a alguma coisa); samideano = pessoa da mesma ideia, alguém que compartilha das ideias de; (compare samreligiano = correligionário, samlandano = compatriota), depois ele passou a amike (amigavelmente), em seguida a kuze (de kuzo, primo) para terminar por frate (fraternalmente). Numa época onde se fala tanto da necessidade de se exprimir, de ser lúcido, “congruente”, transparente nas relações humanas, o que pode fazer o pobre francófono com o seu léxico mal adaptado à riqueza do seu psiquismo e à variedade da experiência humana?


Certamente, a língua francesa e as outras línguas nacionais são ricas e belas, elas merecem nosso amor e nosso respeito. Mas é preciso colocá-las no seu lugar. Aquele que não conhece o falar local ou o dialeto perde toda uma atmosfera íntima, puramente regional, que tem um grande valor, porque ela nos reata às nossas origens. Mas aquele que conhece apenas um falar local e nenhuma língua nacional perde uma quantidade enorme de riquezas culturais, de nuances e de possibilidades de contato. Não há uma relação equivalente entre a língua internacional e a língua nacional? Sem dúvida, é preciso ser louco para expressar isso que eu anuncio: que um dia cada ser humano possua, realmente, três meios de comunicação linguística: o falar regional, a língua nacional, e o xxxxx, que correspondem aos seus três níveis de afiliação, a três patriotismos, que, longe de se oporem, deveriam se integrar uns aos outros.


Veja! Aqui um outro exemplo que lhe oferecerá uma ideia do “rendimento lexical” do pequeno investimento que demanda o xxxxx. Existe na língua internacional um sufixo -aĵo, que designa o objeto, e um sufixo -ado, que designa a ação. A partir do verbo pensi (pensar), você pode formar três equivalentes da palavra francesa “pensamento”: penso é o termo corrente, que se empregará mais frequentemente, mas se você discute filosofia ou psicologia e gostaria de precisar as nuances, você diz pensaĵo para designar a coisa que você pensou, o pensamento enquanto objeto de um ato mental, e pensado para exprimir o fato de pensar, o pensamento enquanto processo. Estas não são complicações excêntricas, porque você somente precisará essas nuances em caso de necessidade. Mas se a situação se apresenta, a palavra está lá, no potencial da língua, e você apenas tem que construí-la. Você será compreendido no mundo inteiro. A ocasião poderia se apresentar, por exemplo, se você traduz um autor grego que diferencia noêsis (pensado, ação de pensar) de noêma (pensaĵo, a coisa pensada, o pensamento que você pensou).


Mas o que eu estou dizendo? Eis que o meu delírio volta a se apoderar de mim. Eu me esqueço que, como todas as pessoas sãs de espírito sabem, o xxxxx é uma língua pobre, um código sem vida, o sonho utópico de alguns pobres loucos...


...uma doença que favorece o interesse pela diversidade das culturas e das línguas


Eu mencionei acima meus correspondentes. Eles desempenharam um papel muito importante na minha adolescência. Não é engraçado ser um doente mental. Mas é ainda menos engraçado estar sozinho. Minha grande consolação é que havia, ao redor de todo o mundo, outras pessoas que apresentavam os mesmos sintomas. Aos 14 anos, eu tive um correspondente chinês e um correspondente japonês, com os quais eu troquei cartas extremamente interessantes em xxxxx. Eles me deram o gosto pela cultura asiática e eu não poderia dizer o quão isso representou para mim. Se, mais tarde, eu tirei um diploma de língua chinesa, eu o devo, em grande parte, ao meu amigo xxxxx-fono Er Tungguo.


Eu tive também correspondentes na Argentina, na Austrália, na Suécia, na Bulgária. Um de meus irmãos foi contaminado (o xxxxx é contagioso) e ele também se correspondeu com xxxxx-istas de vários países. Nós tínhamos por volta de 25 anos quando a Tchecoslováquia do pós-guerra abriu suas portas ao turismo. Meu irmão e eu fizemos parte do primeiro grupo de turistas. Eu jamais esquecerei a acolhida calorosa que nos reservou um grupo de xxxxx-fonos de nossa idade, reunidos pelo correspondente de meu irmão. Os outros turistas de nosso grupo, pessoas sãs de espírito, não tiveram nenhum contato com a população local. Meu irmão e eu aprendemos sobre a vida tcheca mais do que todos os outros turistas juntos, graças às inumeráveis conversações diretas, espontâneas, sem esforço e sem intérprete, com pessoas do povo.


Uma experiência dificilmente transmissível


É preciso acreditar em quem? Na minha experiência, na minha vivência pessoal, ou nos argumentos dos céticos? Se eles tivessem razão, eu não poderia me comunicar, porque o xxxxx não é uma língua verdadeira. “É uma utopia”, me repetem, “as pessoas de povos diferentes falarão uma língua internacional cada uma à sua maneira, segundo suas estruturas gramaticais, seu sotaque, sua semântica, e elas nunca chegarão a se compreender”. Com meu espírito débil, eu não vejo por que um turco e um argentino que se falam em inglês podem se comunicar nesta língua, muito mais difícil de pronunciar e de manejar que o xxxxx, mas o que posso responder? Eles conhecem isso muito mais do que eu. Porque essa é a grande característica das pessoas sãs de espírito: elas não necessitam da experiência para saber.


Um linguista célebre - que nunca aprendeu o xxxxx - não afirmou que esta língua poderia render alguns serviços no nível das banalidades da vida cotidiana, mas que não saberia servir a uma comunicação, em sentido pleno, nos domínios científico, filosófico, político ou literário? Eu assisti a muitas trocas científicas em xxxxx, eu discuti, muitas vezes, política e filosofia nesta língua, eu fiquei emocionado ao ver tantos poemas originais escritos na língua internacional por Kurzens, Kalocsay ou Miyamoto Masao. Mas quem sou eu ao lado de um linguista que não tem necessidade de aprender uma língua para julgar suas capacidades?


Um historiador e homem de letras muito conhecido declarou certa vez, com impetuosidade, na Sociedade das Nações, após examinar um relatório muito favorável ao xxxxx feito pelo secretariado da SDN (relatório rapidamente arquivado sob o golpe de argumentos também irrefutáveis): “Em xxxxx, pode-se tudo traduzir, mas nada se pode exprimir”. Evidentemente, esse senhor jamais abriu um manual de xxxxx, jamais assistiu a um debate nessa língua, mas é um homem são de espírito que na época era titular de uma cadeira em uma grande universidade europeia. Em face desta saúde mental, para quê contar minha experiência da realidade: tais crianças de pai francês e mãe norueguesa cuja língua materna é o xxxxx, tal casal flamenco-húngaro cuja única língua em comum é o xxxxx, tal expressão que me chega tão espontaneamente na língua internacional e que eu sou incapaz de traduzir para o meu francês “natal”?


Você que lê este artigo e é são de espírito, ajuda-me a compreender minha enfermidade. Por que diabos eu sou ferido em minha identidade de xxxxx-fono quando leio aquilo que diz um jornal tão sério como o Le Monde, quando do falecimento do Presidente da República da Áustria, M. Franz Jonas, que falava com muita desenvoltura a língua internacional. O artigo do dia 25 de abril de 1974 contém a seguinte passagem:


“Esta deficiência, junto com (...) seu gosto, explicitado em demasia, pelo xxxxx e pela fotografia em cores, causa risos”. Como é sutil! Como o jornalista transmite habilmente sua mensagem, sem tocar o fato com as duas mãos...! Mas não, eu não compreendo. Quando Jonas e Tito conversaram em xxxxx, a sós, o que isso tinha que pudesse causar risos?


Um dos graves problemas, para os doentes mentais, é o da inserção social. Existem, felizmente, dois grandes escoadouros: as organizações internacionais, de um lado, e as profissões psicológicas, de outro. Eu tive a grande oportunidade de ser admitido nessas duas instâncias.


Uma loucura reforçada pela experiência profissional


Eu me tornei funcionário da ONU porque tinha aprendido muitas línguas. O que é uma complicação bastante frequente da doença xxxxx. Meus correspondentes me deram o gosto pelas culturas estrangeiras. Além disso, eu sabia, por experiência, que era possível dominar outra língua. Mas, sobretudo,- tal é a maneira pela qual meu delírio sistemático explica, hoje, os fatos - eu estava decodificado em relação a minha língua materna. Aprender uma língua supõe, de fato, duas operações, uma decodificação e uma recodificação. Para mim, a decodificação se fez facilmente. Em xxxxx, as estruturas gramaticais são imediatamente perceptíveis, porque a língua é toda regular e as relações entre as palavras, ou, semanticamente, entre as noções, são exprimidas por terminações ou afixos bem visíveis. Eu assimilei logo, sem me dar conta disso, uma gramática universal que me facilitou, incrivelmente, a aprendizagem de outras línguas.


O francófono que aprende o alemão, por exemplo, deve passar de um sistema complexo, rígido e arbitrário a um outro sistema complexo, rígido e arbitrário, sem que nada facilite a articulação entre os dois sistemas. Para passar do francês “je vous remercie” (eu te agradeço) ao alemão ich danke ihnen, é preciso aprender a relativizar duas coisas: o lugar das palavras na frase, e a natureza direta ou indireta do objeto (ihnen é um dativo). Quando eu aprendi o xxxxx, eu dizia no começo, seguindo a estrutura francesa, mi vin dankas, mas eu não demorei a notar nos livros ou revistas que eu lia, nas cartas de meus correspondentes ou nas enunciações de meus interlocutores, que não havia nada de incongruente em dizer mi dankas vin, mi al vi dankas ou mi dankas al vi. A decodificação estava operada.


Todo mundo sabe que é mais fácil aprender a segunda língua estrangeira que a primeira. Por quê? Porque a etapa da decodificação está superada. Como as estruturas linguísticas aparecem de maneira concreta em xxxxx, a decodificação pela contribuição desta língua é particularmente útil. Aprender o xxxxx é, ao mesmo tempo, assimilar uma noção de vocabulário estrangeiro, fazer a análise gramatical e adquirir reflexos que representam uma proveitosa tomada de distância em relação à língua materna.


O mais artificial é verdadeiramente aquilo que se acredita ser?


Quaisquer que sejam as explicações, eu me tornei funcionário da ONU. Eu tinha acabado de chegar à grande casa de vidro quando me enviaram a uma sessão de trabalho: era minha responsabilidade fazer o resumo analítico para um pequeno comitê. Algum tempo antes da minha partida para Nova York, eu participara de uma reunião xxxxx-ista. Havia lá um japonês, um húngaro, um brasileiro, um belga francófono, um islandês... O japonês começou a aprender o xxxxx havia dois anos, o húngaro, nove meses antes da reunião, e os outros eu não sei. A lembrança dos debates, animados, espontâneos, vivos, cheios de humor, ressoava ainda em meus ouvidos.


Foi cheio desta experiência que eu entrei na pequena sala de reuniões onde me enviou meu chefe das Nações Unidas. O destino quis que houvesse ali, também, um húngaro, um brasileiro, um japonês, mas os outros eram um francês, um americano, um soviético e um sírio. Foi extraordinário. Distribuíram-se os documentos em quatro línguas diferentes. Eles falavam diante de um computador e tinham nas orelhas fones de ouvido onde os intérpretes lhes sussurravam em uma língua diferente aquilo que se dizia na reunião. Para estas sete pessoas, havia oito intérpretes e um técnico.


O francês era um originário do sul cheio de vivacidade e que não parava de empregar boas palavras e de tentar colocar nessa reunião severa algum elemento de fantasia. No seu entusiasmo risonho, ele tinha tendência a dar pequenos cutucões em seu vizinho soviético ou a puxar as mangas de sua camisa sorrindo com todos os dentes. Eu jamais esquecerei seu rosto de decepção cada vez que o soviético não reagia. É que havia um atraso de 45 segundos ou meio minuto entre a frase humorística do francês e o sorriso divertido do russo. O brasileiro não sorriu. Não que ele tivesse um humor desiludido. Mas, apesar de ser de língua portuguesa, ele escutava a intérprete espanhola, e esta jovem não estava inspirada: as sutilezas do francês eram, na língua de Cervantes, omitidas ou tristemente abafadas.


O momento mais interessante, para o louco que eu sou, foi o intervalo. Todos passaram para uma pequena sala ao lado onde nos serviram alguns refrescos. Enquanto bebiam o suco de laranja ou o café, os peritos (eram todos universitários de alto nível) se olhavam sem nada dizer, ou falavam muito mal alguma coisa primitiva que se parecia, de longe, com a língua de Shakespeare. Frequentemente eles nos pediam para traduzir, frase após frase, aquilo que eles queriam se dizer.


Surpreso com esta forma de proceder, meu espírito doente emitiu uma hipótese: sem dúvida esses senhores não tiveram tempo de aprender uma língua onde a relação entre o investimento em energia e a eficácia sejam ótimos para a comunicação. Eu os interroguei, um após o outro. O húngaro gastou de sete a oito anos para chegar a um nível bastante lamentável no qual ele se exprimia em russo. O japonês aprendeu inglês durante 10 anos, mas ele causava muitos problemas aos intérpretes por causa do seu sotaque (eu me lembro perfeitamente que a gente nunca sabia se ele dizia primeiro ou terceiro, first e third eram pronunciados por ele de maneira praticamente idêntica).


Os investimentos em energia e em dinheiro sem relação direta com os resultados obtidos


As pessoas sãs de espírito são verdadeiramente estranhas. Assim, elas tinham passado um tempo absurdo para aprender línguas que elas não dominavam e que não lhes permitiam se compreender diretamente. Mas o momento em que eu me deparei, realmente, com o muro das limitações que produzem minha deficiência mental, foi quando me informaram sobre o aspecto financeiro do problema. Na reunião em xxxxx que eu havia participado antes da minha partida para a ONU, as despesas linguísticas se elevaram a 0 francos e 0 centavos. Aqui, para se compreender muito mal, eles dispensaram uma fortuna.


Iniciei algumas pesquisas a este respeito, mas não tive força de prossegui-las. É uma pena. Os orçamentos das organizações internacionais são muito interessantes. No ano de minhas pesquisas, a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, que ocorreu em Nova Déli, custou alguns 8 milhões de francos suíços. Deste número, 4 milhões foram destinados exclusivamente ao sistema multilíngue empregado, e esta soma não compreendia nem a multiplicação das despesas de eletricidade, de papel, das máquinas de escrever e outros materiais, nem os ativos ocasionados pelo recrutamento de 190 intérpretes, revisores e tradutores temporários engajados especialmente para a Conferência ao preço de mil dificuldades. Em maio de 1975, a Assembleia da Organização Mundial da Saúde adotou a resolução de se incluir o árabe e o chinês no estatuto de línguas de trabalho. O Secretário da OMS avaliou em 5.000.000 de dólares por ano o custo mínimo desta decisão. Esta soma permitiria salvar a visão de 10.000.000 de pessoas vítimas de tracoma que vão ficar cegas por falta de dinheiro para medicá-las.


Eu me convenci. Eu não chego a compreender por que o contribuinte são de espírito aceita financiar este tipo de transação. Por que dedicar milhões à tradução, à interpretação e à datilografia multilíngue, quando estas operações são puramente estéreis, já que, no mundo dos loucos onde eu vivo, nossas reuniões internacionais se realizam à perfeição e a comunicação é melhor?


Eu tentei transmitir parte de minhas experiências às pessoas competentes, mas eu vi suas expressões se fecharem, suas sobrancelhas se curvarem e seus sorrisos irônicos aparecerem. As pessoas sãs de espírito sabem que o xxxxx é uma coisa pouco séria, uma mania de alguns excêntricos.


Há duas soluções para o problema da comunicação entre estrangeiros. Esta das pessoas sãs de espírito consiste em estropiar as línguas difíceis como o inglês e o francês, após anos e anos de estudo, nas reuniões onde reina uma felicidade linguística desigual e onde, de todas as formas, não se compreende sem intérpretes nem tradutores. Esta solução é muito superior a esta dos loucos, em dinheiro, evidentemente.


A solução dos loucos mentais de minha categoria consiste em adotar para as relações entre estrangeiros uma língua bem adaptada às exigências do psiquismo humano, para que as pessoas de todas as culturas possam se sentir nela à vontade. De fato, o que inibe a expressão linguística? As dificuldades da gramática e do uso, a falta da palavra correspondente ao conceito. Em uma língua como o xxxxx, onde é preciso cinco segundos para aprender a formar o plural de todos os substantivos, cinco segundos para aprender a formar o presente do indicativo (ou o futuro, ou o condicional...) de todos os verbos em todas as pessoas, cinco segundos para aprender a formar um adjetivo a partir de qualquer nome e o inverso, o rendimento de cada minuto de aprendizagem é extraordinário e a expressão linguística é bem mais fluente. Que sentimento agradável este de não ter de se perguntar a todo instante “vous disez” ou “vous dites”, “on the bus” ou “in the bus”, “er helft mich” ou “er hilft mir”!


Nós outros xxxxx-fonos temos a mesma facilidade para o vocabulário. Nos foi preciso apenas cinco segundos para aprender a formar estrebaria, canil e chiqueiro a partir de cavalo, cachorro e porco, cinco segundos para aprender a formar égua, cadela e porca, cinco segundos para aprender a formar potro, filhote de cachorro e leitão.(5)


Se nós precisamos de aventura, a palavra está lá, imediatamente apresentada ao espírito, enquanto que em inglês ou em alemão, mesmo após 10 anos de estudo...


É preciso ser louco como eu para julgar preferível a comunicação entre estrangeiros com espontaneidade, sem gastar um tostão, após uma aprendizagem de duração razoável (necessita-se de 167 horas para atingir em xxxxx um nível que, em inglês, demandaria 1200 horas de estudo; isso não tem nada de espantoso se se considerar que 80 a 90% das dificuldades de uma língua não trazem benefício algum à comunicação). Por que diabos adotar uma solução tão simples, enquanto é possível escolher outra muito mais complicada, que, além disso, confere a algumas línguas um estatuto privilegiado, com todas as consequências econômicas e políticas que resultam dessa escolha?


Nós outros loucos estamos todos no mesmo pé de igualdade, cada um com seu sotaque estrangeiro, cada um utilizando uma língua que não é a de seu país. Junto às pessoas sãs de espírito, o delegado norueguês ou o finlandês, o húngaro e o mongol, o grego e o português falam uma língua estrangeira, enquanto que o inglês, o americano, o francês, o russo utilizam seus próprios idiomas. Que vantagem sobre os outros! Que arma temível nos debates onde o ridículo é tão importante!


Um dia, em meu delírio, eu contei a experiência vivida do francófono que sou: “Na Bélgica, os únicos Flamengos com os quais eu não experimento, na comunicação, nenhuma dificuldade, nem linguística, nem psicológica, são estes com os quais eu falo em xxxxx”. As pessoas que me cercavam balançaram a cabeça com piedade. Eu sabia o que elas pensavam: “Pobre homem! É um bom sujeito, mas...” Que ideia absurda esta minha! Mas meu delírio me impede de compreendê-las. Eu as ouço gritar: “Direito ao Solo”, “Direito à Maioridade” e eu vejo os punhos se cerrarem, as faces se endurecerem, e tais candidaturas não serem levadas em consideração...


É preciso ser louco para propor como solução uma língua “artificial”, como dizem as pessoas sãs de espírito. É verdade que ela é artificial. Quando nós rimos juntos, os cinco, de cinco países diferentes em um simpático café da manhã, basta ver e ouvir a rapidez de nossa dificuldade em compreender como nós somos afetados em nossa artificialidade. Enquanto que seus fios, seus computadores, seus botões de seleção e suas dezenas de tradutores que trabalham durante toda uma noite nos bastidores para que os documentos saiam em todas as línguas de trabalho na reunião da manhã, as pessoas sãs de espírito encontraram a solução “natural”. O computador, a cabine de intérpretes, os fones de ouvido, eis a natureza. A boca e as orelhas são intermediários? Que horror! Você está louco?


Eu sou louco. Eu vejo bem os seus sorrisos. Vocês são gentis, obrigado. Mas não tentem me convencer. Faz muito tempo que isso persiste. Eu receio que meu caso não tenha cura.


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1. Em francês, Allons où é uma forma verbal hipotética utilizada pelo autor [N.T].
2. Na primeira frase, “Era preciso que eu me maquiasse”, o emprego do verbo grimer no subjuntivo (grimasse) é pronunciado de forma idêntica ao substantivo grimace, que significa careta, resultando daí a dupla interpretação. [N.T]
3. No original: sufixo -er, “boucher, boulanger, charcutier, cordonnier”. “Est-ce qu'il va dérougir vite?”
4. No original: Père: pai. Paternel: paternal. Grand-père: avô. Grand-paternel: “avoal” (somente na teoria). [N.T.]
5. No original: écurie, chenil e porcherie; cheval, chien e cochon; jument, chienne e truie; poulain, chiot e porcelet.


Artigo traduzido por Leandro Freitas
Revisão: César Peres de Matos
Luiza Rangel Coletti
José Luis Almécija Mora
UNESP/São José do Rio Preto - Abril, 2009