Claude Piron

Poesia e Esperanto


É absurdo julgar uma língua pedindo-se a uma pessoa encontrada ao acaso (ou mesmo na Internet) para traduzir um poema. Somente um poeta é capaz de fazê-lo, e são muito numerosos os poemas que são, de toda forma, intraduzíveis. Estas damas estudaram, sem dúvida, o inglês durante anos.(1) Poderiam elas fornecer, do dia para a noite, uma versão poeticamente aceitável deste texto? Existe uma tradução d'As Flores do Mal em esperanto. Se não me engano, é nesta coletânea que apareceu o poema em questão. É preciso consultar esta tradução. Talvez ela seja excelente. Mas talvez ela seja medíocre. Tudo depende, não das características da língua, mas do talento do tradutor.


Eu tenho em mãos a tradução de L'albatros (O albatroz) de Baudelaire em inglês e em esperanto. A tradução em esperanto é muito mais próxima do original, a começar pelo fato de que a versão inglesa muda totalmente o ritmo (sem contar que ela traduz “souvent” (com frequência) por “sometimes”, que quer dizer “às vezes”, o que não é a mesma coisa).


Souvent pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
(Baudelaire)


Sometimes for sport the men of loafing crews
Snare the great albatrosses of the deep,
The indolent companions of their cruise
As through the bitter vastitudes they sweep.
(Tradução de Roy Campbell)


Multfoje por amuzo ŝipanoj kapt-akiras
Albatrojn, ĉi grandegajn ventbirdojn de la mar',
Kiuj, indiferentaj vojaĝkunuloj, iras
Post ŝip' glitanta super amara abismar'.
(Tradução de Kalman Kalocsay)


Outro exemplo, o poema de William Blake que começa por “Tiger, tiger, burning bright...”. A tradução francesa de Félix Rose é “Tigre, tigre, flamboyant d'ardeur...”(2). Essa tradução é bem inferior à tradução de William Auld em esperanto: “Tigro, tigro, brile brula...”, que respeita a concisão, o ritmo e a aliteração.


Essas damas conseguiriam traduzir para o francês, devolvendo sua atmosfera poética, o verso da poetisa checa esperantófona Eli Urbanova: “La dolĉe lula belo betula”? A tradução literal “a beleza docemente embaladora da bétula” perde todo o impacto poético, por não respeitar o ritmo e as aliterações. Poderiam elas traduzir os versos do poeta esperantófono letão Nikolaj Kurzens:


“Ankoraŭ devas nigri vera nokto
ankoraŭ devas fajri vera tago
ne povas ja de grizo ĉio pleni”?


Pessoalmente, embora de língua materna francesa e antigo tradutor profissional, eu não vejo como traduzir esses versos. O francês tem “verdoyer” (verdejar) e “rougeoyer” (avermelhar), mas nenhuma palavra que corresponda ao esperanto “nigri”. Não tem nada que permita a modificação do lugar das palavras, obrigatória para se expressar essas frases num francês normal, e isso faz perder todo o impacto poético:


“Une vraie nuit doit encore “nigroyer”
un vrai jour doit encore éclairer comme un feu
tout ne peut n'être que grisaille”.


“Uma vez mais é preciso que um verdadeiro dia se inflame
uma vez mais é preciso que uma verdadeira noite nos envolva em sua escuridão
tudo não poderia de cinza preencher-se?”(3)


Como transpor isso em linguagem poética, com a força que dão ao original o lugar das palavras e a liberdade lexical, graças ao sistema de terminações (que permite, aqui, empregar os conceitos “negro”, “fogo” e “pleno” como verbos no infinitivo)?


Outro exemplo: a fórmula confuciana que se traduz em francês por “Que os pais desempenhem seu papel de pais e os filhos, seu papel de filhos” ou “Que os pais ajam como pais e os filhos, como filhos”. Ela é muito menos exata, em relação às quatro palavras do original chinês, que a tradução em esperanto: “Patro patru, filu fil'”, onde o aspecto lapidário e poético da fórmula chinesa encontra-se totalmente respeitado, da mesma maneira que o sentido da frase, muito mais amplo que os sentidos restritos que apresentam as traduções francesas.


Eu termino com um exemplo de tradução poética do alemão, um poema de Heine:


Ein Fichtenbaum steht einsam
Im Norden auf kahler Höh'.
Ihn schläfert; mit weisser Decke
Umhüllen ihn Eis und Schnee.


Er träumt von einer Palme,
Die, fern im Morgenland,
Einsam und schweigend trauert
Auf brennender Felsenwand.


O ritmo, as rimas e as imagens são plenamente respeitadas na tradução em esperanto:


Piceo staras norde
Sur kalva mont' en sol'.
Ĝi dormas; glacio, neĝo
Ĝin tegas per blanka tol'.


Kaj sonĝas ĝi pri palmo,
Kiu en suda land',
Sola, funebra, mutas
Sur ardo de rokovand'.


A segunda estrofe, em particular, é evidentemente próxima, em todos os aspectos, do original alemão. Isso em razão de vários fatores, entre eles as características gramaticais da língua, sua grande flexibilidade e o fato de que o léxico é estatisticamente mais próximo do léxico das grandes línguas europeias do que de outra língua: os radicais “palm”, “land” e “vand” existiam em esperanto, com os seus sentidos em alemão, muito antes que o poema fosse traduzido. A probabilidade de encontrar, em Esperanto, uma expressão muito próxima do original é estatisticamente maior que em outras línguas. É evidente que neste papel de tradutor de poesia o esperanto não tem nada a invejar aos outros idiomas.


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1. Este artigo faz parte de uma série de cartas-resposta que Claude Piron enviou a várias partes do mundo, refutando críticas em relação à Língua Internacional. A referência a estas “damas” e à Internet insere-se nesse aspecto retórico do texto, mas não foi possível encontrar as críticas ao Esperanto.
2. Tradução em língua portuguesa de José Paulo Paes: “Tigre, tigre, viva chama...”.
3. Tradução literal:

“Ainda deve flamejar um verdadeiro dia
Ainda deve enegrecer (ou empretecer?) uma verdadeira noite
Não pode de cinza tudo se preencher”.


PIRON, C. O Desafio das Línguas: da má gestão ao bom senso. Tradução e adaptação de Ismael M. A. Avila. 2a ed. revisada e atualizada. Campinas, SP: janeiro de 2007, p. 133.


Artigo traduzido por Leandro Freitas
UNESP/São José do Rio Preto - Abril, 2009