Claude Piron

Reacções psicológicas ao esperanto


1. Diferentes reacções
2. Mecanismos de defesa
3. Angústia subjacente
4. Conclusão: a função da resistência psicológica
5. Referências


1. Diferentes reacções


Para um psicólogo que explore as reacções à palavra “Esperanto”, dois factos se destacam:


1) muitas das pessoas que são convidadas a exprimir-se sobre o tema têm muito para dizer;
2) tomam como evidentes, e em muitos casos exprimem espontaneamente, pontos de vista contrários à realidade controlável, como: “nunca ninguém escreveu um romance em esperanto”, “o esperanto é uma língua que ninguém fala”, "não há crianças cuja língua materna seja o esperanto”, etc.


Tais convicções são claramente ilustradas em carta do leitor Peter Wells, de Singapura, ao Time magazine:


Esperanto has no cultural history, no indigenous literature and no monolinguals or even first-language speakers. (Wells, 1987)
[O Esperanto não tem nem história cultural, nem literatura original, nem falantes de língua única e nem sequer falantes de quem seja a primeira língua.]


Para além disso, muitos dos interrogados manifestam todos os sinais de implicação emocional. Alguns reagem entusiasticamente, excitadamente. Mas a maioria olha de cima, como se aquilo não passasse, com toda a evidência, de uma criancice. E tal tipo de indivíduo mostra assim, em tom de repúdio, ou irónico, ou com um risinho superior, em relação aos «ingénuos» que disso se ocupam, que o esperanto não é uma coisa séria.


Se, para ter uma comparação, uma reacção de referência, o inquiridor lhe propõe que se exprima sobre o búlgaro ou o indonésio, recebe uma resposta totalmente diferente. Num minuto o interrogado esclarece, num tom perfeitamente neutral, tudo o que ele pode dizer sobre isso, nomeadamente, em geral, que a esse respeito nada sabe.


O contrate é espantoso. Revela-se até mais forte quando se procura testar o seu conhecimento sobre o esperanto, com perguntas precisas acerca da literatura, da expansão geográfica, da capacidade de expressão, etc. Torna-se imediatamente claro que a informação que o interrogado tem sobre o esperanto é, na quase totalidade, errada, muito mais do que os esboços de conhecimentos que ele pode congeminar sobre as línguas de referência.


Provavelmente, línguas como o búlgaro e o indonésio percebem-se como pertencendo ao campo dos factos, enquanto que o esperanto é sentido como proposta. Ante um facto, inclinámo-nos. Face a uma sugestão, sentimo-nos obrigados a responder sim ou não, e imediatamente a defender esse ponto de vista. Mas por que é que o esperanto não é sentido como situado no campo dos factos? E por que é que a reacção se mostra tão emocional, com tanta frequência? A implicação da esfera emocional não se limita a conversas particulares, como atesta a seguinte citação, tirada de um artigo sobre a pedagogia da língua latina, artigo que no resto expressa um tom muito neutral e informativo.


Gloire donc au latin, et à bas 1'esperanto, mixture aux relents d'artifice et aux espérances déçues! (G.P., 1985).
[Glória portanto à língua latina, e abaixo o Esperanto, mistura mal cheirosa de artificialismo e de esperanças enganosas!]


Esta frase, desenquadrada do restante texto, impressiona, como se um esguicho emocional aflorasse inesperadamente de uma ignota profundeza. Por quê?


2. Mecanismos de defesa


Certas afirmações acerca do esperanto ou do campo mais vasto da comunicação linguística internacional - que surgem facilmente quando se pede a um interlocutor uma opinião sobre o tema, ou nas reuniões oficiais dedicadas ao tema - revelam-se, do ponto de vista da análise, marcadas pela acção dos chamados «mecanismos de defesa». Deste modo se denominam as tácticas, inconscientemente organizadas, com que evitamos ter de enfrentar uma realidade que se supõe ameaçante (Freud, Anna, 1937). Eis alguns exemplos:


a) Negação.


O esperanto é tratado como não existente, em contextos onde seria lógico tê-lo em consideração. Por exemplo, o livro Le langage, "A Linguagem", da série enciclopédica La Pléiade, (Martinet, 1968), que, em 1525 páginas, trata de calões e crioulos tal como de tradução e afasia, não contém nenhuma descrição, nem sequer um parágrafo, sobre este fenómeno admirável: uma língua conhecida de apenas uma pessoa, há um século atrás, que hoje é usada em mais de cem países. E seria também lógico que a ONU, quando detalhadamente analisa os problemas encontrados na comunicação linguística, considerasse esta experiência, mesmo que fosse para, após exame e com razões explícitas, a rejeitar. Mas assim não acontece (King e outros, 1977; Allen e o., 1980; Piron, 1980).


Até mesmo um linguista, considerando precisamente o tipo de comunicação diariamente realizada através do esperanto, aborda a questão, como se essa experiência nunca tivesse acontecido:


While economists are exercised in creating a Eurodollar, why should we not try for a Eurolanguage too? (Lord, 1974, p.40).
[Enquanto os economistas se ocupam com a criação do eurodolar, por que é que nós não experimentamos produzir também uma eurolíngua?]


A primeira reacção de um industrial face a um problema de produção é considerar todas as soluções aplicadas noutros lugares para ver se não existe, algures, um sistema que o satisfaça, antes de procurar uma nova saída. Tal modo de agir, natural na vida quotidiana, praticamente nunca se adopta em comunicação internacional. Num sentido psicanalítico isto configura a negação do real.


b) Projecção.


Chama-se projecção ao facto de se atribuir a outrem características psíquicas que se encontram em nós, mas das quais não temos consciência. Um bom exemplo é a frase.


Efforts to devise universal languages which could be adopted without prejudice and learned without trouble — languages like Esperanto — represent a noble intent combined with an essential ignorance of what language is and how it works. (Laird, 1957, p. 236).
[Esforços para inventar línguas universais, as quais poderiam ser adoptadas sem preconceito e aprendidas sem esforço - línguas como o esperanto - representam em si mesmas uma nobre intenção coligada a uma ignorância crassa sobre o que é uma língua e como ela funciona.]


O esperanto satisfaz todos os critérios linguísticos aceitáveis para definir uma língua (Martinet, 1967, p. 20). Se um autor, não verificando, nem baseando a sua opinião em argumentos factuais, parte do princípio de que isto não é verdade, não será ele a expressão da ignorância que vê nos outros? [Sobre "how it works", veja o artigo do linguista italiano Alessandro Bausani (1961) "L'esperanto, una lingua che funziona"].


Com frequência atribui-se ao esperanto traços que o transformam num monstro mutante. Eis como um professor de línguas dos Estados Unidos descreve tal língua (cito apenas a tradução porque não disponho do original):


A língua, como o amor e a alma, é algo humano e vivo, bastante difícil de definir: é um produto natural do espírito duma raça, não de um homem só... Línguas artificiais são repelentes e grotescas, como pessoas com pernas ou braços metálicos, ou com um instrumento de controlo de ritmo no coração. O Dr. Zamenhof, qual Dr. Frankenstein, criou um monstro feito de peças e bocados vivos, e, tal como Mary Shelley nos procurou dizer, nada de bom pode daí resultar. (Arbaiza, 1975, p. 183).


Ou, sem justificação, declara o esperanto


orienté vers la suppression graduelle des traditions (Accontini, 1984, p. 5).
[orientado para supressão gradual das tradições].


Em tais juízos actuam temores inconscientes ou fantasias, que são projectados na língua: em vez de a estudar como uma realidade linguística, literária, social ou psicológica, quem assim ajuíza relaciona-se com ela como com uma personagem dum sonho, animada de maliciosas intenções, sem perceber quão delirante é uma tal atitude, no sentido psiquiátrico do termo.


c) Racionalização.


Pontos de vista não racionais são defendidos por um ror de argumentos persuasivos. Por outras palavras, tal como no clássico discurso paranóico, a apresentação das ideias é rigorosamente lógica. Apenas a falta de base real atraiçoa a sua essência imaginária.


Por exemplo, atribui-se ao esperanto um carácter analítico e flexional indo-europeu, com base no suposto facto de que Zamenhof apenas conhecia línguas indo-europeias. Mas nenhuma de tais afirmações é verificada. De facto,


A subcapa cultural, na qual as contribuições asiáticas e húngaras desempenham um grande papel, ocupa uma posição importante na idiossincrasia do esperanto. Entre as duas grandes guerras, a actividade literária em esperanto desenvolveu-se em grande parte no mundo húngaro, com a denominada escola de Budapeste. O húngaro não é indo-europeu.


Zamenhof conhecia bem línguas não indo-europeias: a sua criação está marcada pelo hebraico; por exemplo, o campo da significação (semântica) do morfema ig apenas tem um equivalente exacto, entre todas as línguas que dominava, no hebraico hif'il (Piron, 1984, p. 26).


O esperanto funciona por aglutinação, não por flexão. As frases tanto podem ser sintéticas como analíticas - tanto se pode dizer mi biciklos urben como mi iros al la urbo per biciklo (eu” biciclo” para a cidade ou eu vou à cidade de bicicleta); a exploração dos textos revela que as formas sintéticas são muito frequentes - e se é verdade, que na fonética e no vocabulário o esperanto é indo-europeu, não o é estruturalmente: nenhuma língua indo-europeia se estrutura como o esperanto por morfemas rigorosamente imutáveis.


d) Isolamento.


Isolamento diz-se do retirar algo do seu contexto e ajuizar sem referência. Quando alguém diz, sobre as línguas:


Il arrive aussi qu'il en naisse, mais jamais du néant: 1'espéranto est un échec (Malherbe, 1983, p. 368).
[Também acontece nascerem línguas, mas nunca do nada: o esperanto fracassou].


isola a língua internacional do seu contexto, quer histórico quer linguístico. De facto, o esperanto situa-se no contexto de uma longa série de experiências e reflexões ao longo dos séculos. O trabalho de Zamenhof tem uma génese lenta, que em muitos aspectos se assemelha à evolução de uma língua, tal como a génese do embrião evoca a espécie; esta produção gradual é digna de ser estudada (Waringhien, 1959, p. 19-49). Por outro lado, os morfemas que o constituem radicam noutras línguas; não são elementos «nascidos do nada».


O esperanto não nasceu do nada mais do que, por exemplo, o crioulo haitiano. Uma língua aparece para responder a uma necessidade. No arquipélago das Caraíbas existia, entre os escravos de diversas etnias e línguas, uma necessidade de intercomunicar; de tal necessidade surgiu uma língua colorida, em grande parte baseada no falar dos seus donos brancos, mas estruturalmente de outra espécie. De modo semelhante, nos anos 1880-1910, uma parte da população mundial suspirava por contactos externos e alargamento dos horizontes culturais, mas, nas suas circunstâncias de vida, não era possível aceder à aprendizagem de línguas. Estas pessoas apossaram-se do projecto de Zamenhof e usando-o transformaram-no numa língua viva. Nem o crioulo nem o esperanto nasceram do nada; geraram-nos a mesma força psico-sociológica: a vontade de dialogar.


Consideremos o seguinte texto:


Allez prendre un oiseau, un cygne de notre lac par exemple, déplumez-le complètement, arrachez-lui les yeux, substituez à son bec plat celui du vautour ou de 1'aigle, greffez sur les moignons de ses pattes les échasses d'une cigogne, mettez dans ses orbites la prunelle du hibou (...); ensuite, inscrivez sur vos bannières, répandez et criez ces mots: "Ceci est l'oiseau universel", et vous vous ferez une petite idée de la sensation de glacement qu'a produit sur nous cette terrifiante boucherie, cette vivisection nauséabonde, qu'on n'a cessé de nous prôner sous le nom d'espéranto ou langue universelle. (Cingria, pp.1-2).


[Captemos um pássaro, um cisne do nosso lago por exemplo, depenemo-lo completamente, retiremos-lhe os olhos, substituamos-lhe o bico chato pelo do abutre ou da águia, enxertemos-lhe patas de cegonha, empurremos-lhe para dentro das órbitas as pupilas de um mocho (...); agora inscrevam-no nos vossos estandartes, difundam-no com a frase: «eis o pássaro universal», e tereis uma pequena ideia do sentimento gélido, que nos provocou este açougue aterrorizante, esta vivissecção nauseabunda que não param de nos propor com o nome de esperanto ou língua universal.]


Se se ultrapassar o aspecto figurativo desta citação e as palavras que evidenciam a dimensão da reacção emocional (“açougue aterrorizante ", “vivissecção nauseabunda”), restam duas críticas:


a) o esperanto é o resultado da intervenção humana em algo vivente;
b) é uma língua heterogénea.


A conclusão do citado autor apenas teria sentido sob três condições:

se uma língua fosse um ser vivo, semelhante a um animal;
se a intervenção humana num ser vivo fosse sempre de eficácia desastrosa;
se uma língua heterogénea não fosse adequada para intercomunicar.


Hipnotizado pela sua visão de pesadelo, o autor isola a sua imagem das referidas condições. Não vê que assimilar uma língua a um ser vivo é apenas uma metáfora que não pode ser demasiado alargada. O pássaro sofreria enormemente, mas quando a ortografia holandesa foi reformada nos anos 40, a língua não gritou, nem precisou de anestesia.


Em segundo lugar, o homem frequentemente intervém em seres vivos com os melhores resultados. A fome seria muito mais dramática na Índia se, graças a uma conscienciosa intervenção do homem na natureza, não tivesse havido sucesso na produção de novas espécies de cereais. E nem cães, nem rosas, nem pão existiriam se o homem não tivesse, voluntariamente, aplicado os seus talentos aos seres vivos.


Em terceiro lugar, se a heterogeneidade fosse condenável, o inglês não poderia funcionar satisfatoriamente. A análise linguista revela que o inglês é mais heterogéneo do que o esperanto:


When we come to a language like English, we find ourselves dealing with several languages rolled into one. (Lord, 1974, p.73).
[Quando analisamos uma língua como o inglês, encontramo-nos perante várias línguas ressoando dentro de uma.]


O esperanto é mais homogéneo, porque as leis que regem a assimilação dos elementos captados do exterior são mais rigorosas. O que faz a heterogeneidade de uma ligação não é a origem diversa das partes, mas uma certa desarmonia conjugada com a falta de um núcleo assimilador (como sabe todo aquele que já experimentou fazer... maionese).


3. Angústia subjacente


A função dos mecanismos de defesa é proteger o ego contra a angústia. O seu aparecimento, logo que o esperanto é mencionado, significa que, no psiquismo mais íntimo, esta língua se faz sentir como angustiante.


a) Medo da mudança de situação.


De alguma forma, a resistência psicológica ao esperanto é comparável à oposição que as ideias de Cristóvão Colombo e de Galileu encontraram: um mundo bem ordenado, estabilizado, foi revirado por estas novas teorias que fizeram perder à humanidade o seu sólido e milenar fundamento. De modo semelhante, o esperanto aparece a incomodar um mundo onde a cada povo corresponde uma língua, que é recebido dos antepassados em bloco e que ninguém tem o direito de ultrajar. Ele mostra que uma língua não é necessariamente uma dádiva dos séculos passados, mas pode resultar de simples convenção. Usado como critério de correcção não conforme à autoridade, mas eficaz na comunicação, transforma o modo de interrelacionar: onde estava um eixo vertical, aí aparece um eixo horizontal. Assim, ataca muitos aspectos profundos os quais em geral costumamos respeitar. Por exemplo, que fazer da hierarquia das línguas, com ele? O gaélico (irlandês), o holandês, o francês e o inglês não estão ao mesmo nível nas mentes, nem em muitos textos institucionais. Se, para comunicar entre si, os diferentes falantes optarem pelo esperanto, essa hierarquia perde o seu fundamento.


b) A língua como valor sagrado e símbolo de identidade.


Uma língua não é apenas um fenómeno externo, social. É tecido na nossa personalidade. “Eu mamei o catalão com o leite materno” disse alguém, interrogado no quadro da investigação que serve de base a esta análise.


Os nossos conceitos têm um envolvimento emocional, ao qual o linguista não dá muita atenção, mas que é muito importante para o nosso comportamento. O núcleo sentimental do conceito «língua» situa-se na relação com a mãe, razão pela qual, provavelmente, muitas línguas chamam materna à língua familiar. Entre o bebé, que apenas pode gemer para exprimir o seu sofrimento - frequentemente sem receber uma reacção adequada - e o pequenino de três anos, que por palavras esclarece o que acaba de acontecer, uma grande mudança ocorreu, a qual a criança sente como miraculosa.


Nós éramos demasiado jovens, quando aprendemos a falar, para termos consciência de que apenas se desenrolou o mais banal processo de aprendizagem. Vimos nisso quase um presente mágico, um brinquedo divino. Antes não éramos capazes de esclarecer fosse o que fosse, e eis-nos, sem perceber a razão, de posse dum talismã que cumpre todo o tipo de milagres e favorece, até um grau sem precedentes, aquilo sem o qual não seria possível viver: o interrelacionamento humano.


A necessidade de se sentir compreendido é uma das necessidades básicas da uma criança. Bem, sem linguagem, o que restaria? A atitude dos pais e depois a longa influência da escola, que apresenta a língua como norma inviolável e como chave de todas as belezas literárias, apenas reforça este núcleo sentimental. Em tal contexto, afirmar que uma língua “fabricada” por um quase contemporâneo - em geral confunde-se o esperanto com o projecto de Zamenhof - pode funcionar tão bem como a língua materna é um insulto, é roubar à língua materna o seu estatuto de talismã mágico, que sempre conservámos no nosso psiquismo mais profundo, até mesmo se, a um nível consciente, o concebemos com mais racionalidade. É um sacrilégio intolerável. Provavelmente, para evitar tal profanação alguns falantes de esperanto, por uma motivação psicológica afinal compreensível, consideram que o trabalho de Zamenhof não é justificável por si mesmo e deve ser atribuído a uma inspiração de altas esferas espirituais, sobre-humanas.


De facto, quando se exploram as reacções psicológicas que a palavra esperanto evoca, apenas nos podemos admirar do número de pessoas que não toleram a ideia de que esta língua possa ser, em certo aspecto, superior à sua língua materna. Esta reacção advém da tendência de identificar língua e pessoa: a minha língua é o meu povo, a minha língua sou eu; se a minha língua é inferior, o meu povo é inferior e eu também. Declarando a priori o esperanto sem valor e proclamando tal juízo como uma evidência, a gente salva-se. Usamos um artifício maximamente humano, perfeitamente compreensível, mas não admissível dum ponto de vista científico.


c) Medos diversos.


Explorar as reacções ao esperanto pelo método da entrevista clínica evidencia todo o tipo de medos escondidos, os quais não podem ser aqui tratados detalhadamente. Mencionarei apenas sete:


I. O medo de arriscar. Desde que nenhuma instância oficial, nenhuma instituição prestigiada dê valor ao esperanto, declarar-se-lhe favorável significa ter um ponto de vista distante daquele que aparece como se fosse o oficial. É menos arriscado repetir o que todos dizem e o que parece estar de acordo com o sentir dos importantes ou da elite intelectual.


II. Medo do contacto directo.< Há alguma segurança no facto de nos fazermos entender através de tradução, ou de uma língua imperfeitamente dominada, incapaz de veicular uma troca de ideias de forma directa, detalhada e com subtilezas. Enfrentar, em perfeitas condições de comunicação, pensamentos radicalmente diferentes dos nossos pode ser uma experiência chocante, perigosamente confusa. Tem razão de ser esse medo, porque o esperanto se situa na nossa mente num nível mais próximo da palavra espontânea do que as restantes línguas. Um jovem japonês que deu a volta ao mundo, contactando em cada etapa esperantistas locais, contou quanto o chocavam aqueles diálogos directos com pessoas, que, apenas porque eram elas próprias e assim se exprimiam, lhe alteravam toda a visão do mundo (Kiotaro Deguti, 1973).


III. Medo de uma regressão à infância. "Simples" confunde-se com "demasiado simples" ou com "infantil", o que faz surgir a ideia de que o esperanto não pode exprimir verdadeiramente o pensamento adulto, ao nível mais abstracto. Assim isola-se o factor “simplicidade” do seu complemento - que modifica totalmente a situação - nomeadamente da possibilidade ilimitada de fazer combinações. Por exemplo, a terminação a, que em esperanto marca o adjectivo, não obstante ser mais simples do que os muitos sufixos portugueses que desempenham o mesmo papel, torna possível uma expressão precisa porque se liga a qualquer morfema. Enquanto alguns substantivos portugueses não têm o correspondente adjectivo, como, por exemplo, país (em esperanto, landa “do país”).


IV. Medo da transparência. Imagina-se que o esperanto coloca no pensamento uma clareza insuportável:


L'élément affectif si important dans le langage trouve difficilement sa place dans cette langue claire où tout est explicite, cette langue "plus précise que la pensée". (Bumey, 1966, p. 94).
[O aspecto afectivo, tão importante numa língua, dificilmente se encaixa nesta língua clara, na qual tudo é explicitado, uma língua mais precisa do que o pensamento".]


De facto, é possível igualmente ser impreciso em esperanto como em qualquer outra língua, mesmo que, frequentemente, seja mais fácil exprimir-se de modo claro na língua de Zamenhof.


V. Medo de desvalorização ligada à facilidade. A solução mais complicada dum problema é sentida como mais valiosa do que a solução simples. Escolher a via mais complexa satisfaz uma certa tendência para o engrandecimento, o que gera um sentimento de segurança e conforto acerca da sua própria importância.


VI. Medo da heterogeneidade. Esta é uma forma particular de um estado classicamente denominado «angústia da fragmentação». Porque uma pessoa facilmente se identifica com a sua língua, o esperanto favorece a projecção nele de emoções relacionadas com a totalidade da nossa personalidade. Ele faz-se sentir, inconscientemente, como uma construção feita de pedaços dispersos e autocontraditórios, facilmente destrutível e sempre prestes a ruir. Como símbolo de algo não suficientemente robusto, porque enxertado de demasiados elementos diferentes, o esperanto intimida.


VII. Medo de um nivelamento por baixo e da destruição. O esperanto torna-se perceptível como um cilindro de estrada que ao passar comprimirá tudo, arrasando todas as diferenças culturais. Projectam-se assim, na língua de Zamenhof, aspectos psíquicos que pertencem, quer ao que Freud chamou de instintos de morte (Freud, 1920), quer ao núcleo afectivo inconsciente que Charles Baudouin chamou de “autómato” (Baudouin, 1950, pp. 225-229).


4. Conclusão: a função da resistência psicológica


A razão das reacções emocionais assinaladas no começo deste estudo torna-se agora mais clara: o interessado tem medo. Aterroriza-o a ideia de que alguém arranque ou estrague o santo e insuperável tesouro que brilha no fundo do seu psiquismo: a língua materna, símbolo da sua identidade. De modo semelhante ao passarinho encurralado, que tomado de pânico não deixa de colidir contra a janela sem reparar na porta aberta que está ao lado, ele não tem a necessária serenidade para tranquilamente observar o que é, afinal, aquele esperanto que parece profanar o próprio conceito de língua. Ele está preso num círculo infernal (sem saída): para deixar de ter medo é necessário encarar de frente a realidade, mas para isso é preciso não ter medo.


Este tipo de reacção ilógica, mas típica da psicologia humana, não existiria sem a intervenção de factores políticos e sociais, que os meios de comunicação ampliam e alastram, mas que analisar aqui não seria possível (eu trato-os noutro lugar, ver Piron, 1986, pp. 22-28 e 34-36). Eles de facto supõem uma influência subliminar comparável à da publicidade e da propaganda política, baseada numa desinformação involuntária que se reproduz a si mesma, automaticamente, há já um século. De outro modo não seria possível compreender que crianças e adolescentes quase nunca apresentem a priori a reacção negativa que facilmente se encontra nos adultos, embora todos os elementos psicológicos que fazem funcionar os mecanismos de defesa nestes últimos estejam também neles.


Manipulado pelos seus medos inconscientes, os nossos contemporâneos não vêem que, antes de julgar o esperanto, seria necessário estudar um conjunto de factos. Pode-se lamentar isso. Mas, numa perspectiva histórica, verifica-se que tais reacções têm um efeito positivo. Uma aceitação geral imediata do embrião da língua composto por Zamenhof submetê-lo-ia a distensões, das quais não sairia vivo. Naquele estádio, a língua era demasiado delicada, demasiado incompleta. Precisava de um período de vida suficientemente longo em meio limitado, mas multicultural, para que os necessários ajustes se efectivassem, que os campos significantes (semânticos) se definissem, que se corrigissem as falhas, naturalmente, pelo uso.


Por outro lado, as relações linguísticas sempre foram relações de poderoso a fraco. A ideia de substitui-las por relações de igualdade, proporcionando à menos importante linguazinha o mesmo estatuto das línguas dos gigantes económicos e culturais, era demasiado chocante para que a humanidade pudesse, sem mossa, adaptar-se-lhe rapidamente. Transformações na forma geral do pensar impõem uma assimilação lenta.


Depois de um século de desafios, de ataques políticos e intelectuais, o esperanto emerge visivelmente forte, flexível, refinado. Caracteriza-o uma personalidade fortemente marcada, tão vigorosa como o francês no tempo de Rabelais. Este facto, a maioria das pessoas nega-o ainda, mas sempre a priori. Se o interessado se baseia no estudo de documentos, ou na observação do esperanto usado na prática, reconhece o seu grande vigor. Se a resistência social e psicológica contra o esperanto foi durante longo tempo muito forte, e agora aparece cada vez mais sem folgo, não será simplesmente porque terminou a sua função?


REFERÊNCIAS


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