Claude Piron

Por que o alfabeto latino,
se o Esperanto se propõe universal?


Precisamos poder escrever e o alfabeto é mais prático que outros sistemas de escrita (ideogramas chineses, hieróglifos etc.). Não existe um alfabeto que seria adequado para o mundo inteiro. Exceto se pensarmos em algo totalmente novo, é inevitável que haja povos para os quais escrever e ler em Esperanto seja mais fácil que para outros. A escrita latina não é o sistema mais justo, apenas o menos injusto para a maioria. Pode-se olhar para isto como uma solução provisória, uma solução prática do problema, se um dia for decidido a elaboração de um alfabeto universal para a língua mundial.


A escrita, com relação à língua, não é algo realmente essencial; é para uma língua como uma roupa está para o corpo. Se a maioria da humanidade preferisse, poderíamos vestir o Esperanto com outra escrita, mas de forma provisória o sistema funciona perfeitamente. Passar a um novo alfabeto inventado implicaria em muitos problemas técnicos.


O alfabeto latino é o que usa a maioria das línguas hoje escritas. Geograficamente ele cobre


(a) todo o continente americano
(b) toda a África, à exceção da margem mediterrânea ao norte, o Sudão e a Etiópia
(c) todo a Oceania
(d) grande parte da Ásia (Malásia, Indonésia, Timor, Nova Guiné, Filipinas, Vietnã e até, se não me engano, uma ou duas ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central)
(e) grande parte da Europa, desde o ocidente até os países bálticos e Turquia (apenas a Grécia, Sérvia, Bulgária, Macedônia, Rússia, Ucrânia, Belarus, Armênia e Geórgia usam um alfabeto não-latino).


Em grandes federações, como foi a União Soviética e hoje é a Índia, diversas línguas têm seu próprio sistema de escrita; em outras palavras, não existe um único alfabeto ou sistema para o país inteiro. Não faria sentido dar preferência a um desses ao invés do alfabeto latino.


Algumas línguas antes se escreviam com outro alfabeto. O turco, o swahili e o malaio usavam o alfabeto árabe, mas passaram para o latino. O vietnamita usava antigamente a escrita chinesa, mas desde o século XVII adotou-se o latino. O moldavo, que se escreveu com o alfabeto cirílico durante o período soviético, desde a queda da União Soviética se escreve com o alfabeto latino.


É verdade que um bilhão de chineses usa os ideogramas, e este número pode ser impressionante, porém:


1. Essa escrita não é adequada para uma língua mundial, pois os ideogramas são extremamente difíceis de se decorar (quem passa alguns anos - para certas pessoas, alguns meses - sem escrever, esquece como fazê-lo; continua reconhecendo os ideogramas e pode lê-los, mas não sabe mais como reproduzir ativamente um certo número deles). Tal foi a minha própria experiência, mas confirmada a mim não só por chineses, como por uma japonesa quanto aos ideogramas chineses usados no japonês;


2. Na China, já há quatro décadas as crianças começam a aprender a escrever no alfabeto latino. Elas passam para a escrita chinesa apenas quando estão aptas a escrever e a ler com as letras latinas. Por isso em livros infantis vez por outra se vê uma palavra em caracteres latinos no meio do texto em chinês: é uma palavra que a criança ainda não aprendeu a ler e que ela deve decifrar pelo som (isto não vale para Taiwan; não sei quanto a Hong Kong e Cingapura).


Pelo fato de que o inglês se tornou a primeira língua estrangeira na maior parte do mundo, 95% dos alunos de escolas de segundo grau que usam em sua própria língua outra escrita, aprendem as letras do alfabeto latino. Isto vale para a Coréia do Sul, o Irã (onde se pode escolher o francês, mas nada muda quanto ao alfabeto), a Índia, o Paquistão e muitos outros países (todos os árabes, se não me engano). O mesmo vale para a maioria dos alunos na Rússia, Ucrânia, Grécia e similares. No Japão, já na idade de dez anos todos os alunos aprendem nosso alfabeto. No Marrocos, Argélia e Tunísia as crianças aprendem a escrever em francês.


Já que, diferentemente do inglês, em Esperanto a cada som corresponde uma letra e vice-versa, ler e escrever no alfabeto do Esperanto para jovens que já conhecem as letras, portanto para a imensa maioria que tenha passado do ensino fundamental, é uma meta que se pode alcançar relativamente rápido.


É fácil criticar. É mais difícil apresentar uma alternativa útil e justa. O que os críticos do alfabeto latino propõem como sistema de escrita para uma língua mundial? Os que dizem "o Esperanto não é aceitável porque usa o alfabeto latino" deixam o problema sem solução. Mas uma solução é necessária. Na prática eles obrigam as pessoas que desejam poder se comunicar internacionalmente a usar a língua inglesa. Isto não só as obriga a dominarem o alfabeto latino, como também a usá-lo de uma forma muito menos fácil.