O Esperanto é adequado para a expressão jurídica
Segundo a União Europeia o principal defeito do esperanto é a sua imprecisão. Pelo menos assim parece, segundo o novo sítio-nete das línguas da UE, que constata que «palavras sem ligação à história ou à cultura viva não são suficientemente precisas para fins jurídicos”. Pela sua própria experiência, Claude Piron - que trabalhou como tradutor nas Nações Unidas - é de opinião que o esperanto é melhor meio de veiculação de assuntos jurídicos do que as actuais línguas nacionais - mas que de facto serão necessárias algumas décadas para que a tradição se complete e se afirme.
Será o esperanto suficientemente preciso para fins jurídicos? Em minha opinião sim, tanto quanto outras línguas. Eu, de vez em quando traduzi ou controlei traduções em esperanto de textos jurídicos (por exemplo, há alguns anos atrás um projecto de lei belga sobre um imposto especial, algo semelhante à taxa Tobin) (1) e nunca me deparei com qualquer falha básica ou essencial da língua. Podem faltar termos, mas eles são facilmente criáveis quando há uma definição adequada. Se a União Europeia ou as Nações Unidas optarem pelo esperanto, um banco de termos rapidamente será criado, se desenvolverá, e funcionará perfeitamente. A longo prazo, portanto, o esperanto serve perfeitamente como língua jurídica. O esperanto tem muitos traços linguísticos do latim que o tornam tão adequado aos assuntos jurídicos, como aquele o foi no seu tempo.
Participei na tradução para esperanto da Carta das Nações Unidas e de outros documentos básicos, como a Convenção para os Direitos da Criança. Houve problemas de tradução, mas não mais, provavelmente menos, do que em muitas outras línguas. Geralmente a tradução para esperanto levanta menos problemas sérios do que a tradução para francês, porque a sintaxe do esperanto é mais flexível e o sistema de formação de palavras ajuda, com frequência, a resolver o problema de forma elegante, quando a língua francesa apenas o pode tornear pelo recurso à multiplicação de palavras.
As diversas tradições jurídicas diferem muito umas das outras, e é frequente não ser possível exprimir, numa língua definida, conceitos jurídicos que se desenvolveram noutra tradição jurídica. Quando estive na ONU, trabalhei com um jurista chinês nalguns textos e posso garantir que o esperanto é mais adequado para o direito ocidental do que o chinês, que é língua oficial em muitas organizações. Não me recordo agora que tipo de problemas levantava o direito chinês. Talvez em relação a ele, o esperanto fosse menos adequado.
As diferenças entre o direito anglo-saxão e o romano são enormes, e para o tradutor, principalmente quando trabalhei na ONU, isso tornava-se verdadeiramente incomodativo. Estas diferenças complicam o trabalho, tanto mais quanto a língua inglesa tende a evocar, e a francesa a definir. Por isso, frequentemente, em textos jurídicos de língua inglesa, o conceito em vez de estar definido está identificado por uma série de palavras, algumas das quais sinónimos perfeitos. O que se segue não é um exemplo verdadeiro, mas com frequência parece-me que a língua jurídica inglesa funciona deste modo. Em vez de dizer “Quem quer que tenha comprado as mencionadas mercadorias”, o texto diz: “Any person having bought, purchased, acquired, procured or received against payment the goods, merchandises, wares or articles mentioned therein..." (Perdoem-me se exagero, mas, bem...).
A língua inglesa é muitíssimo imprecisa. Os falantes de língua inglesa não se apercebem disso porque interpretam imediatamente duma certa maneira, sem terem consciência de que pode haver outras interpretações. Uma vez observei que, numa assembleia duma organização sobre aviação civil internacional, alguns participantes não percebiam bem o significado do nome da organização, na qual eles representavam os seus respectivos estados. Portanto, compreendiam mal a competência jurídica da organização. Por causa da imprecisão do título em inglês "International Civil Aviation Organization", interpretavam esse título como "organização internacional da aviação civil", em vez de "organização da aviação civil internacional". A diferença é importante porque define a competência da instituição. De facto, consultados os estatutos e o nome noutras línguas, vê-se que a organização apenas controla as "ligações internacionais da aviação civil" (em esperanto "internaciaj civil-aviadaj ligoj") e não é, de modo nenhum, uma organização internacional competente sobre todos os assuntos relacionados com a aviação civil, incluindo os voos domésticos. É muito mais fácil evitar tal dubieza em esperanto do que em inglês.
Em minha opinião, o esperanto exprime bem melhor os assuntos jurídicos do que as línguas actuais, mas serão necessárias algumas décadas para que a tradição se complete e se afirme.
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1. Trata-se da “Proposta de lei que visa cobrar imposto sobre o intercâmbio de divisas, notas e moedas” apresentada em 12 de Março de 2002 (documento DOC 1685/001).