Claude Piron

Toda a gente sofre de afasia?


Esclareça-se primeiro por que é que me interesso pela afasia em relação a problemas linguísticos e ao esperanto. A afasia é uma doença, e em vez desta palavra especializada poder-se-ia dizer uma doença da incapacidade da linguagem. A doença consiste em que uma pessoa, que anteriormente falava, deixe normalmente de poder exprimir-se com fluência. Nalguns casos a perda da fala é total, noutros apenas parcial. Falarei sobre as causas e sintomas posteriormente. Por agora quero apenas mostrar-vos por que é que o assunto se apresenta interessante para esperantistas.


Como sabeis sou psicólogo e psicoterapeuta. Um dos trabalhos que profissionalmente faço é ajudar pessoas, principalmente jovens, que começam a trabalhar neste ou naquele campo da psicologia, a cumprir os seus deveres profissionais. Geralmente designa-se tal tarefa de controlo ou supervisão; de facto trata-se da ajuda de alguém experiente a outrem não experiente, pela observação do modo como o menos experiente tratou este ou aquele caso. Concretamente, a tarefa apresenta-se deste modo: a pessoa visita-me uma ou duas vezes por semana, consoante acordo prévio, e descreve como ele ou ela tratou um ou mais casos. O objectivo deste encontro é triplo.


Primeiramente, ouvindo o que os colegas - em geral jovens - contam sobre a pessoa que eles tratam, eu posso ajudá-los a compreenderem melhor o caso. De facto, mesmo que eu não diga nada, surge uma melhor compreensão, simplesmente porque, quando se relata uma ocorrência, alcança-se uma visão mais clara do assunto. O simples facto de termos de exprimir por palavras as nossas vivências ajuda-nos a melhor compreendê-las. Mas para além disso, porque tenho muitos anos de experiência em tal tipo de casos, faço com frequência alguma observação que passou despercebida ao jovem psicólogo, ou da qual ele ou ela tirou uma conclusão imprecisa, ou chamo a atenção para a necessidade, não percebida, de informar-se sobre este ou aquele ponto de modo a ter uma imagem clara da totalidade do caso, etc. Frequentemente, também, apercebo-me de aspectos que o outro não se apercebeu pela sua demasiada proximidade ao paciente. Para se ter uma boa visão da complexidade é preciso um certo distanciamento do caso.


A segunda vantagem do acordo é que quando nos encontramos na linha da frente, por assim dizer, não temos tempo para pensar em tudo, temos de reagir rapidamente, e é bom poder posteriormente repensar todo o assunto e contar a outrem a ocorrência para mais facilmente consciencializar-nos de eventuais erros ou pensar noutra maneira de reagir, possivelmente mais eficaz. Embora nem toda a gente saiba que esse trabalho de nos confrontarmos com um colega mais experiente, se faz em psicologia, trata-se da principal fonte de compreensão do que se deve ou pode fazer. Aprende-se a profissão recorrendo ao colega mais experiente. Aprende-se, sobretudo, acerca de nós mesmos. Descobre-se por que é que um complexo, um problema, um traço característico nosso desempenha um papel no modo de tratar o caso e por vezes o perturba. E esta aprendizagem sobre si mesmo é um aspecto muito importante do trabalho psicológico e sobretudo psicoterapêutico. Por exemplo, se não tomarmos consciência de que ao falarmos com o paciente o fazemos tanto para o impressionar, nos impormos a ele, quanto para ajudá-lo a progredir para uma vida psiquicamente melhor e mais sã, muito se perderá do efeito das nossas palavras ou atitudes no paciente. E para que se tenha consciência de que se está a trabalhar atabalhoadamente é necessário que alguém, por fora, no-lo clarifique, porque geralmente uma pessoa não gosta de enfrentar as próprias falhas e o psiquismo humano tem um grande alfobre de tácticas e estratégias eficazes para evitar ver o que lhe desagrada.


Em terceiro lugar, o relato do que se passa entre o paciente e o psicólogo é frequentemente muito útil porque, a dimensão da responsabilidade, o grau de seriedade do caso, a concentração necessária para ajudar uma pessoa que sofre intensamente, ou uma pessoa que se encontra numa aparente situação sem saída, causa angústia ou outra forma de tensão da qual o psicólogo pode, em parte, libertar-se, discutindo o assunto com um colega compreensivo, competente e mais experiente. O jovem psicólogo sente-se menos só. Há alguém que o ajuda, apoia, aconselha, e isso é importante para conservar o seu equilíbrio psíquico, quando constantemente é confrontado com situações difíceis de grande responsabilidade.


Entre os colegas, que me contactam para esse fim, vem ter comigo, há já um ano, uma jovem terapeuta da fala. O seu trabalho é com pessoas que têm problemas em expressar-se. Pode ser crianças que, por causa de partos difíceis que lhes provocaram lesões cerebrais, nunca falarão, mas que podem ser ajudadas a exprimir-se por modo diferente do oral; pode ser pessoas com derrames cerebrais e que ficaram mais ou menos paralisadas e perderam ao mesmo tempo, parcial ou totalmente, a capacidade da fala; pode ser toda a espécie de problemas ligados com a capacidade de bem falar. De facto ela trabalha em duas instituições, uma para crianças, outra para adultos, que têm problemas de saúde cujas causas radicam no cérebro.


Sobre as técnicas que existem para ajudar as pessoas a falar sou totalmente incompetente. Nisso não posso ajudá-la. Ela conhece a sua especialidade profundamente, enquanto eu tenho apenas um conhecimento mínimo desse assunto. O que ela espera de mim tem que ver com dois aspectos do seu trabalho. Um é a relação com o paciente do ponto de vista emocional. Trata-se, neste particular, das atitudes que podem ajudar ou obstacularizar a maneira de falar e de agir para criar uma relação, o mais possível eficaz, com o paciente. E o segundo é o apoio a ela. As pessoas que ela conduz à reaquisição da capacidade de falar, frequentemente sofrem muito, ou reagem tão desagradavelmente que não é fácil suportá-las, uma após outra, num dia inteiro de trabalho. Este trabalho impõe capacidade de resistência nervosa, serenidade e outras belas qualidades que apenas à custa de um grande cansaço é possível ostentar quotidianamente. No fim da semana ela está esgotada. E dividir a tensão contando a alguém, que compreende o que ela passa e lhe mostra compreensão pelas suas reacções, é quase uma lufada de ar para quem está prestes a sufocar. Ela, a meu ver, trabalha muito bem, e eu admiro-a muito. O seu trabalho comigo é portanto o factor que me instigou a que eu começasse a olhar o problema da comunicação mundial do ponto de vista da afasia.


Outros exemplos


Quando comecei a pensar por esta via surgiram-me outros exemplos que eu vivi, antes de me relacionar com esta jovem que pratica a terapia da fala. Recordo-me, por exemplo, duma menina que conheci e que começou a falar apenas quando tinha 12 anos. Durante doze anos não falou. Era claro que ela compreendia o que se lhe dizia, mas nenhuma palavra saía da sua boca. Se se lhe fazia uma pergunta, ela não respondia, ou apenas por um movimento de cabeça ou outro gesto (mais tarde, eventualmente, pela escrita). Os pais compreensivelmente vivam muito angustiados por tão estranha conduta. Consultaram toda a espécie de especialistas, mas nenhum conseguiu perceber porque é que ela não falava. Ela não era de modo nenhum surda. Também não tinha défice mental. Tinha uma inteligência normal. Tudo fisicamente era normal. Contudo não falava.


Mas o mais estranho é que, subitamente, quando tinha doze anos, começou a falar. E falava perfeitamente. Durante doze anos não disse nada e eis que começa a expressar-se pela fala e pronuncia perfeitamente, sem mais erros gramaticais do que os da mesma idade, com um vocabulário igual ao das meninas da sua idade (o que, de resto, era normal; ela de facto lia livros e revistas). Numa noite ela transmigrou do mutismo ao perfeito domínio de língua e fala. Nunca se compreendeu qual foi a causa do seu mutismo. Era, claro, puramente psicológico. Poderemos dizer que ela recusava falar. Mas porquê? E porque mudou a sua decisão? Isso apenas ela saberá. Ou talvez nem ela o saiba. Muito em nós é inconsciente. E porque trabalhar com a parte não consciente do psiquismo é o principal da minha ocupação profissional, nada, nesse campo, me espanta.


O aspecto interessante deste caso é a estranha constatação de que se pode aprender a falar sem exercitar-se. Ou será que ela se exercitava às escondidas? Será que à noite, na cama, escondida sob os lençóis, ela exercitava a língua, o palato, a garganta, as cordas vocais? Não sabemos.


Mas que o nosso cérebro seja capaz de aprender algo semelhante sem um exercitamento específico, isso eu sei por outro caso. Tratou-se do vizinho mais próximo da minha casa, quando nós vivíamos em Coppet. O jardim deles tocava o nosso. Mais próximo não podia estar. Ele era «americano» e ela francesa. Uma vez, já ele era reformado, quis mudar o vidro de uma janela que iluminava a escadaria que conduzia à cave. Precisava de um escadote para alcançar o sítio da colocação do novo vidro, mas colocar uma escada em equilíbrio em cima de degraus não é tarefa fácil e pode tornar-se impossível ; não sei como é que os profissionais se desenvencilham em tais circunstâncias. Como quer que seja, ele não o conseguiu com total equilíbrio e quando segurou o vidro com ambas as mãos tombou para trás e, ao cair, bateu com a nuca violentamente contra a parede e feriu-se com gravidade. Teve uma lesão cerebral grave. Durante algum tempo duvidou-se até da possibilidade de sobrevivência. Sobreviveu, porém as consequências da lesão foram tão graves que ele nunca mais se comportou como um adulto. As suas capacidades ficaram reduzidas às de uma criança de cinco ou seis anos. Mas o estranho é que quando ele recobrou a fala tinha perdido o seu fortíssimo sotaque «americano» que antes claramente evidenciava quando falava francês, que sempre falou bem, quer quanto ao vocabulário quer quanto à gramática. Depois do acidente falava como um indígena francês. Isso prova que o seu cérebro armazenou todas as informações necessárias para pronunciar como um francês, assimilou de algum modo como posicionar de forma adequada a língua, como tocar com ela o palato ou os dentes, como controlar o fluxo de ar, etc. Tudo isto o seu cérebro registou e guardou. Mas por que é que antes ele nunca usou tais informações? E como é possível usá-las adequadamente sem as exercitar? Da menina de doze anos sobre quem falei antes pode-se supor que ela se exercitou às escondidas. Mas em relação a este homem não. O comportamento humano e sobretudo o funcionamento do cérebro estão cheios de mistérios.


Situação angustiante


Mas não foram apenas estes casos que me fizeram rever a opinião sobre o problema linguístico olhando-o do ponto de vista da afasia. O meu caso pessoal teve um papel importante, como facilmente compreenderão. Na minha vida, estive por diversas vezes em situações atemorizantes, próximo da morte, mas os minutos mais angustiantes foram os que passo a relatar.


A ocorrência deu-se, certa vez, quando me encontrava profundamente cansado. Esgotado, mesmo. Durante várias semanas desenvolvi demasiadas tarefas em diversas associações nas quais tinha responsabilidades, tive demasiados problemas e reuniões relacionados com o meu trabalho de professor na universidade, e casos verdadeiramente pesados no meu trabalho terapêutico. Encontrava-me claramente esgotado. E deveria ir a Lausane para testemunhar num processo judicial em que um dos meus ex-pacientes estava envolvido. Habitualmente, para me deslocar a Lausane, que dista cerca de quarenta km da minha casa de então, eu levava o meu carro. Mas nessa tarde, sentia-me tão cansado, tão desfalecido, que disse para a minha mulher: «Não me agrada a ideia de conduzir. Não tenho autoconfiança suficiente. Sinto-me tão cansado que me arrisco a causar algum acidente. Prefiro ir de comboio». Fui pois de comboio. Quando cheguei ao prédio em que se encontrava o tribunal, o bedel pediu-me que aguardasse. «Sente-se aqui» disse ele «alguém o há-de chamar». Sentei-me pois no lugar de espera. Esperei, esperei, esperei e nada aconteceu. Se estivesse no meu estado normal teria certamente procurado alguém e indagado. Mas eu estava tão desfalecido que não sentia vontade de me levantar da cadeira. Por fim, cerca das 18 horas, apareceu o mesmo bedel que me disse : «O que faz aqui?». Eu respondi-lhe: «Pediu-me que esperasse até que me chamassem. Eu estou cá como testemunha.».   «Oh, perdoe-me» disse ele «esse caso foi adiado. O juiz só o tratará daqui a duas semanas. Por erro não o informaram». Fiquei furioso por me fazerem perder uma tarde inteira, mas estava tão cansado que não consegui expressar a minha cólera. Sentia o conflito em mim, uma tensão entre a parte de mim que estava irritada e queria mostrar a sua cólera e o cansadíssimo sistema nervoso que não era capaz de gerar nem os gestos nem as palavras para isso. Voltei pois à estação e regressei a casa. A minha mulher esperava-me para o jantar. Começámos a comer e conversámos, como era costume. Mas num determinado momento - momento angustiante - quis dizer algo, mas constatei que não o podia fazer. A minha boca recusava-se. Em vez de pronunciar as palavras que eu queria que a minha boca dissesse, ouvi-a dizer «boua, boua, boua» ou algo semelhante. Imediatamente fui tomado duma angústia terrível. Vi que a minha mulher - que estava à minha frente, me olhou com uma expressão de horror. Ela decerto pensou o mesmo que eu: "Desarranjo cerebral, apoplexia ou algo semelhante".


Vivi então uma situação muito estranha. Eu dualizei-me. Dividi-me em duas partes. Uma parte era como uma criancinha aterrorizada que pensava: «Não voltarei a ser normal, algo se estragou em mim, talvez nunca mais venha a ser capaz falar, que tipo de vida será a minha?» E uma outra parte reagia como profissional. Claro que aprendi sobre afasia e assuntos afins, quando estudei o cérebro durante os meus estudos. Parte de mim, friamente, racionalmente analisava a situação. Junto ao miúdo angustiado e atemorizado, sentava-se, sentindo todas as emoções deste, o profissional racional. Em poucos segundos aquela parte de mim fez toda uma série de observações, raciocínios, testes e conclusões, como se faz normalmente para diagnosticar. Eu pensava: «Eu sei o que quero dizer. A frase que quero pronunciar está totalmente clara no meu cérebro, poder-se-ia dizer: claramente dactilografada na pantalha do meu computador cerebral. Sei o que quero dizer e conheço as palavras e a gramática. Não me falta a linguagem. O centro cerebral do controlo da linguagem não foi tocado. E a minha capacidade de pensar e raciocinar de modo claro permanece intacta. Constato que a minha memória acerca do que estudei sobre estes casos está perfeita. Posso usá-la para controlar isto e aquilo e alcançar conclusões fiáveis para as minhas hipóteses. Apenas a parte articulada da fala está afectada. Eu dou ordens à minha boca, garganta, língua e pulmões, mas eles não me obedecem. É como o automóvel cujo eixo de transmissão entre o volante e as rodas não funciona, mesmo que se mova o guiador as rodas não obedecem.


Por um lado, profundamente angustiado, e por outro, pensando com clareza, raciocinei e observei o que ocorria comigo durante talvez cinco minutos. E após estes cinco minutos, subitamente, recuperei a capacidade de falar. Um grande alívio iluminou a cara da minha mulher. E certamente a minha também. E eu pude contar normalmente o que acabava de viver. O que ocorreu foi, muito provavelmente, que na parte do cérebro que rege os movimentos dos órgãos da fala um vaso se comprimiu, durante algum tempo (não se rompeu), parando o fluxo de sangue nessa região provocando, durante alguns minutos, o não funcionamento dessa parte do cérebro.


Desde este dia, a minha relação com os deficientes modificou-se completamente. Agora sei, por experiência própria, que se pode parecer um perfeito idiota - como me assemelhei durante aqueles minutos - e contudo ter uma mente que intelectualmente funciona na perfeição.


Os sintomas da afasia


Concentremo-nos agora no termo afasia. Especialistas neste campo distinguem fala de linguagem. Se alguém articula ou pronuncia com dificuldade, diz-se: «A perturbação situa-se ao nível da fala». Se alguém dificilmente encontra a palavra desejada, combina palavras com dificuldade para formar frases, ou até mesmo compreende com dificuldade o significado de algo dito ou escrito, diz-se: «A perturbação situa-se ao nível da linguagem».


Os principais sintomas da afasia são:


1. Falta a palavra necessária, que não vem à mente. É semelhante àquela situação em que se procura o nome da pessoa e não se o encontra, mas sente-se que se está quase lá. Em português, diz-se «Tenho o nome debaixo da língua». O nome exacto não se forma na mente, mas tem-se uma ideia imprecisa, nebulosa acerca dele. Diz-se: «Raz parta, como é que ele se chama?» e pensa-se: «Tá´qui mesmo!». Às vezes até se diz: «É um nome que começa por esta ou aquela letra». Mas de facto não se chega lá. Em semelhante situação, um afásico, resigna simplesmente. Não termina a frase que começou. Trata-se, não duma perturbação da memória, mas da dificuldade de encontrar algo que está algures num recanto escondido da memória. A palavra procurada reaparece sem problema posteriormente, numa outra situação.


2. Reduz-se a quantidade expressiva. Os afásicos não se expressam muito. A quantidade de palavras que são produzidas é reduzida. Com frequência respondem às perguntas com um “sim” ou um “não”. Procuram as palavras e frequentemente não conseguem formar uma frase. De modo semelhante, escrever pode ser difícil para eles. Alguns apenas sabem escrever o seu nome ou alinhar algumas letras.


3. A pronúncia sai do normal. Pode ser imprecisa ou demasiado carregada. Em geral o afectado fala lentamente. Muitas vezes não é possível compreendê-lo, porque os sons são disformes ou a articulação não suficientemente clara. Alguns, como aconteceu comigo, não conseguem formar palavras ou frases: a boca não é capaz de obedecer às ordens da mente; produzem sons, mas estranhos - no meu caso eram muito obtusos -, totalmente diferentes daqueles que a pessoa quer fazer sair.


4. Às vezes os afásicos erram a palavra. Por exemplo dizem: «Procuro os meus olhos» em vez de «Procuro os meus óculos». Ou trocam as sílabas da palavra: «Aquela criança está mal trinuda» em vez de «nutrida».


5. Os afásicos dificilmente compreendem o que se lhes diz, mesmo ouvindo bem. O mesmo pode acontecer com a leitura. Podem não compreender um texto escrito.


Estes traços todos não vos fazem recordar algo bem conhecido? São exactamente as mesmas características que se podem observar quando nos relacionamos através de uma língua estrangeira. Busca-se a palavra que exprima o conceito totalmente claro que temos na mente. Comete-se erros gramaticais. Exprimimo-nos pouco. Tendemos a responder por «sim» e «não» e para simplificar a situação, que é sentida como altamente complicada e extenuante, desistimos de dizer tudo o que gostaríamos de dizer. Pronuncia-se estranhamente. Troca-se palavras. Compreende-se mal. Acho pois totalmente adequado dizer que, quando alguém se encontra numa situação em que fala uma língua diferente da materna, conduz-se como um afásico, quer quando não compreende e se cala, quer quando se esforça por comunicar de modo bastante limitado e atabalhoado.


Alguns contestar-me-ão dizendo que a palavra «afásico» se usa apenas nos casos em que alguém, que anteriormente era capaz de comunicar pela fala perde essa capacidade, enquanto que tratando-se duma língua estrangeira a capacidade de falar nunca existiu. Mas de facto existiu! Quando os afectados estavam no seu país, na sua família, com os seus amigos, eles esprimiam-se perfeitamente. É pois adequado falar de perda da capacidade de comunicar ligada à passagem duma fronteira linguística. Anteriormente, na sua região, eram capazes de comunicar com palavras. Mas eis que no novo meio perderam essa capacidade, não mais são capazes de o fazer. Exactamente o que ocorre com os afásicos.


As causas


O que faz diferenciar a situação de quem se encontra em meio linguístico estranho de outros casos de afasia é a causa. Mas a afasia é um campo muito vasto e complexo. Inclui diversas causas. Seja por exemplo a afasia causada por desarranjo físico, afasia “somática”, segundo a linguagem especializada. A causa pela qual o afectado perdeu a capacidade de falar liga-se à matéria orgânica do cérebro, desorganizada por doença ou acidente. Ocorreu uma lesão, um dano, por exemplo um derrame ou entupimento dum vaso sanguíneo, ou apareceu um tumor que pressiona as células nervosas, os neurónios, e impede-os de funcionar normalmente, ou ocorreu algo corpóreo, físico, que impossibilita o normal funcionamento da parte do cérebro que controla a capacidade de falar ou compreender. Esta é a forma de afasia de que mais frequentemente se fala. Mas há também afasias de origem psíquica. A menina, acerca de quem falei anteriormente, que durante doze anos não pronunciou uma frase, nem uma palavra, embora o seu cérebro, o seu sistema nervoso e todos os seus órgãos funcionassem perfeitamente e ela fosse normalmente inteligente, tornou-se, durante aquele período, afásica por decisão própria, ou pelo menos por algum tipo de reacção psicológica a não se sabe o quê. Há muitos casos semelhantes. Por exemplo, uma criança que fala normalmente pode cessar de o fazer após ser violentada sexualmente. O atentado é algo de tal modo incompreensível, traumático, penoso e culpabilizador - este aspecto sempre me impressionou, que uma pessoa sexualmente violentada, sem o ter desejado e não o tendo apreciado, uma vítima portanto, se sinta culpada do ocorrido em vez de se sentir vítima, ou mesmo sentindo-se vítima - tão incompreensível e culpabilizador que a vítima deixa de falar. O choque foi demasiado forte. Não é exprimível. Recusa-se portanto a expressão. Algo semelhante pode surgir após bombardeamentos ou ocorrências militares semelhantes. Muitas crianças no Iraque deixaram de falar porque viveram ocorrências inefáveis. Em tais casos fala-se de afasia psíquica. Em geral, não é definitiva, mas pode sê-lo.


O terceiro tipo: afasia sociogénica


A minha hipótese é que existe um terceiro tipo de afasia que ninguém, que eu saiba, analisou como pertencendo ao campo da afasia. Chamo-a de “afasia sociogénica”. Porque a causa reside na organização social. A minha justificação é a seguinte. O cérebro humano está programado para que as pessoas possam exprimir-se linguisticamente e deste modo comunicar, compreender-se uns aos outros. Que nos intercompreendamos, é considerado normal. Quando uma criança, como a menina de doze anos de quem falei anteriormente cresce e cresce, e após alguns anos, quando a maioria já é capaz de exprimir-se, ainda não começou a falar, todos dizem: «Há algo de anormal».


Consideremos agora o que acontece quando, por exemplo, um japonês procura comunicar com um checo. No nosso tempo, normalmente procuram comunicar em inglês. Mas de facto eles comportam-se como afásicos.


Uma boa descrição desta espécie de comunicação atabalhoada fez o jornalista americano Barry Newman num artigo intitulado "World Speaks English, Often None Too Well; Results Are Tragicomic", ('O mundo fala inglês, frequentemente mal; os resultados são trágico-cómicos') no The Wall Street Journal, vol. LXXVI, n° 110, em 22 de Março de 1995. Ele apresenta uma conversa entre o director da Daihatsu-Auto na filial da firma em Praga e os seus colaboradores checos. Constata-se a todo o tempo que eles muito dificilmente se compreendem uns aos outros. Mas cada um de nós certamente esteve presente em tais contactos entre falantes de línguas diferentes, que procuram comunicar em inglês, e muito dificilmente ou de modo nenhum o conseguem. Referi no Desafio das Línguas um diálogo entre um jovem holandês e uma francesa da mesma idade que passeavam pela região de bicicleta, e que eu ouvi numa esplanada. Eles procuravam comunicar em inglês, mas o seu inglês assemelhava-se a linguagem de afásico não muito profundo. Em tais situações, observa-se o seguinte. A palavra necessária falta constantemente, não vem à mente, e os falantes devem fazer gestos ou circunlóquios complicados para tentarem clarificar o que pretendem. Têm frequentemente a expressão de quem gostaria de dizer alguma coisa, mas depressa rezignam. Respondem o mais possível por «sim» ou «não». Vê-se na cara a frustração, quando começam a falar e imediatamente constatam que as palavras faltam. Às vezes encontram as palavras, mas não conseguem formar com elas uma frase compreensível.


Pronunciam de forma obscura, incapazes de formular os sons adequados. Falam lentamente. Frequentemente o interlocutor não compreende porque a articulação não é boa em relação a diversos sons, como o inglês /th/ ou um grupo de consoantes de fim de palavra, como em first, asks, acts, posts, etc. Em tais casos um japonês, por exemplo, tem tendência para acrescentar vogais. Pronunciar três consoantes seguidas no fim de uma palavra de um sopro só é muito difícil para a maior parte dos povos.


- Usam por vezes uma consoante ou uma vogal atabalhoadamente. Por exemplo, um japonês, chinês ou vietnamita diz stin em vez de still, berry em vez de very, e pronuncia accent por accept, e caught por coat.


- Com relativa frequência compreendem mal o que se acabou de dizer.


Como vimos atrás, estes são sintomas típicos da afasia. Há pois o direito de falar em afasia nestes casos. Mas claramente que a causa da afasia não é nem física nem psíquica, embora em parte provavelmente se trate de assunto psicológico. Estas pessoas sentem-se inseguras quanto ao domínio da língua e essa falta de segurança é um factor psicológico que complica o problema. Porém a causa principal da afasia não reside no corpo, isto é, no cérebro, ou num problema psíquico. Reside no modo como a nossa sociedade, à escala mundial, trata os problemas linguísticos.


Há falantes de línguas diferentes que não se comportam como afásicos


Isto pode ser provado em comparação com outras pessoas, social, étnica, saudável e intelectualmente semelhantes que não apresentam os sintomas da afasia. Observe-se como comunicam indivíduos da mesma idade e do mesmo nível social, oriundos de diferentes países que se encontram num congresso de Esperanto, se eles são aquilo que o Prof. Pierre Janton chamou de «esperantistas maduros», isto é, gente com experiência no mundo do Esperanto, que várias vezes participa em encontros de esperantistas.


Claro que algumas vezes eles também não encontram a palavra adequada, mas isso ocorre com muito menos frequência do que com aqueles que estudaram, durante o mesmo período de tempo, outra língua comum. Muito menos recorrem a gestos ou a circunlóquios para clarificar o que querem dizer. Falam muito mais do que aqueles que usam o inglês, e verbalizam respostas mais completas. Muito menos vezes se lhes vê expressões de resignação ou frustração pela impossibilidade de se exprimirem. Há entre os japoneses e chineses algum problema para pronunciar /r/ e /l/, mas isso poucas vezes cria confusão e, em geral, eles pronunciam de modo bastante claro. Nunca tropeçam em palavras que terminam por uma sequência de consoantes, porque, em esperanto, quase todas as palavras terminam por vogais, semi-vogais e por /n/ ou /s/ que são sons que se encontram no fim das palavras de quase todas as línguas, incluindo a japonesa. É verdade que o japonês de vez em quando baralha consoantes, por exemplo, ele pode dizer /bendo/ em vez de /vento/, mas em comparação com um seu patrício que se esforça por exprimir-se em inglês, estes casos são muitíssimo menos frequentes. Para além disso nunca erram nas vogais. E praticamente compreendem tudo o que os outros lhes dizem.


Por outras palavras, embora haja alguns vestígios de afasia num contexto Esperanto, não atinge o nível elevado de afasia que ocorre quando duas pessoas procuram comunicar em inglês. Esta comparação possibilita-nos afirmar cientificamente que a afasia daqueles que procuram exprimir-se em inglês não é inevitável, não é algo, por assim dizer, inscrito nos genes das pessoas ou no modo como a sua mente se desenvolveu, mas que se liga apenas à escolha da língua de comunicação.


E por que é que os falantes do inglês macarrónico escolheram uma língua de comunicação inadequada? Verdadeiramente eles não escolhem. A sociedade organizou a comunicação linguística, à escala mundial, de tal modo que o outro sistema seja desconhecido e não proposto. As pessoas portanto fazem o que lhes é imposto na escola. Efectivamente, no Japão, como na Coreia e na China, muitos começam a aprender o inglês já no primeiro grau da escola elementar, geralmente ao quarto ou quinto ano, e continuam a estudá-lo no segundo grau, e quando eles já têm dez anos de estudo da língua inglesa, com três ou quatro horas por semana, portanto após mais ou menos 1500 horas de esforço, são apenas capazes de usá-la como afásicos, como pessoas que perderam a sua capacidade de falar (ou ler e escrever). O facto de que pessoas que investiram um mínimo de 50 horas e, em geral, menos de 200 no estudo básico de esperanto e depois tiveram oportunidade de praticá-lo, comunicam como pessoas psíquica e mentalmente sãs, e não como afásicos, prova que a afasia se fica a dever à língua escolhida e não a nenhuma outra causa. Podemos dizer que a sociedade mundial se organizou de modo a que as pessoas não sejam capazes de comunicar normalmente de povo para povo, de cultura para cultura. Por que o faz? A resposta é complexa. Inclui factores políticos, sociais e psicológicos.


Factores políticos da organização patológica da sociedade no campo linguístico


Entre os factores políticos pode-se citar a acção do governo francês, quando a questão do esperanto foi submetida à Liga das Nações, nos anos vinte do século XX. A «afasia sociogenética» foi nessa altura atacada com a proposta de que se deveria introduzir o ensino do esperanto em todas as escolas do mundo. Mas o governo francês movimentou-se muito energicamente para que tal proposta nunca fosse aplicada. Com sucesso. O mundo esqueceu-se dela.  Igualmente os governos dos Estados Unidos da América do Norte e da Grã-Bretanha agem claramente no sentido de fazer crer que não há outra solução para o problema linguístico - por outras palavras, que nada há a fazer para curar o mundo da afasia sociogénica - que não seja aprender e usar o inglês o mais amplamente possível. Detalhes de tal política, por vezes camuflada e subtil, pode-se ler em livros como os de Robert Philipson, Linguistic Imperialism (Imperialismo Linguístico) ou English Only Europe (Europa com inglês apenas) ou, em francês, no livro de Yves Eudes, La conquête des esprits (A conquista das mentes).


Factores sociais


Entre os factores sociais, podemos realçar o facto de que, quando um grupo social detém um privilégio, ele age para conservá-lo. Actualmente, no campo da comunicação, podemos dizer que a humanidade está dividida em dois grupos: aqueles que possuem o inglês e os que o não possuem. De facto, a situação é mais complexa do que isso porque o grupo dos que possuem o inglês de facto divide-se numa série de subgrupos conforme a capacidade de o usar. Há os que o dominam a língua quase na perfeição. Estes são os que estudaram durante quatro ou cinco anos numa universidade de língua inglesa ou habitaram durante muito tempo em país anglófono, ou que o usam quotidianamente na sua ocupação profissional. Há os que possuem um conhecimento suficientemente bom da língua inglesa que lhes permite participar em ambiente internacional, porém não totalmente a contento, isto é, não ao nível dos falantes de inglês étnico. Há os que sabem inglês suficiente para compreender o que ocorre na sua especialidade, mas não são capazes de usá-lo fluentemente noutros campos, etc., etc. Mas é um facto que a maioria dos terráqueos não possuem conhecimentos de inglês e estão colocados fora dos círculos do poder político e económico.


E os privilegiados, claro, aplicam todas as suas capacidades para conservar o seu privilégio. Tudo fazem para que se não fale claramente sobre o problema linguístico, isto é, sobre aquela forma de afasia, cujas raízes se fundam na organização social do mundo. Por consequência eles são instintivamente inimigos do esperanto. Nos anglófonos de origem este sentimento é compreensível. Eles beneficiam duma grande vantagem que não desejam perder. Nos outros, a ideia, porventura inconsciente, mas real e influenciadora da conduta, é que eles investiram muito esforço na aquisição da língua inglesa e que esse investimento se perderia, seria vão, se o inglês se tornasse inútil por adopção generalizada do esperanto. Estas pessoas agem, com frequência não conscientemente, para divulgar a ideia que, para além do inglês, não há outro modo de comunicar de um povo a outro. De facto, eles conseguiram convencer quase toda a sociedade de que assim é. As ideias transformam-se, como vírus ou micróbio, em epidemia. A maioria das pessoas está pronta para aceitar sem crítica ideias inúmeras vezes repetidas. Quando as pessoas que trabalham em meios de comunicação de massas aceitam uma ideia rapidamente a passam a toda a sociedade, mesmo que seja uma ideia que complica de facto a vida de muitos milhões de pessoas. Tal é a situação actual acerca da ideia de que fora do inglês não há salvação, e que não vale a pena explorar as propostas utópicas do esperanto. Quem teve oportunidade de discutir este tema com jornalistas e com cientistas e funcionário sabe que eles não têm a mínima dúvida de que o inglês venceu definitivamente e que afinal isso nem é mau. Eles não imaginam que a maioria das pessoas sofre de afasia quando sai do seu próprio meio ou encontra pessoas de outra cultura, nem imaginam que isso não seja uma fatalidade.


Factores psicológicos


Mas claro, as ideias transmitem-se apenas quando há terreno favorável à sua aceitação. E assim alcançamos a terceira espécie de factores que impedem de pensar objectiva e saudavelmente sobre a afasia sociogenética, isto é, os factores psicológicos.


Contei-vos sobre aquela menina que durante doze anos se recusou a falar, não se sabe porquê. Noutros casos, sabe-se. Por vezes, uma criança que durante longo tempo não disse uma palavra, embora anteriormente falasse normalmente, e por fim recomeça a falar, então torna-se claro que ela decidiu silenciar-se porque, por exemplo, alguém se ri dela e isso é-lhe insuportável. É melhor nada dizer do que provocar risota e sentir-se humilhada. Isso pode ocorrer com uma criança que gagueja.


A minha hipótese sobre a afasia sociogénica é que algo semelhante ocorre na sociedade mundial. Provavelmente não acreditam em mim. Um leigo, habitualmente, não é capaz de imaginar quão forte pode ser a decisão inconsciente. Não compreende mesmo que existam processos inconscientes importantes no psiquismo. Mas independentemente de alguém acreditar ou não eles existem e também à escala social. A minha hipótese é que a humanidade não se cura da afasia social porque teme fazê-lo. Mas esse medo é inconsciente.


Para alguém com treino psicológico que visita fóruns da internete nos quais se discutem problemas linguísticos, isso é evidente. O que salta à vista em tais fóruns é o facto de, quando alguém propõe o esperanto, o que ocorre com relativa frequência, aparece uma série de críticas e rejeições, frequentemente insultuosas. E dos argumentos dos contraditores é fácil perceber que eles não sabem nada acerca do esperanto, como funciona, como se comporta em comparação com o inglês ou outros sistemas no campo do multilinguismo ou da tradução e interpretação, etc. Estes opositores não sabem nada, mas nunca dizem: «Vou informar-me e quando estiver informado darei a minha opinião». Não, dizem simplesmente: «És parvo!», «O esperanto nunca terá sucesso», «Todos falariam esperanto de um modo que não se compreenderiam entre si», «O esperanto é utópico», etc. etc. Nunca factos, nunca documentos, nunca dados controláveis, nunca comparações. Apenas afirmações levianas. Ou mais precisamente afirmações sem base racional ou objectiva, mas com forte base emocional. Se não houvesse tal base emotiva, as frases seriam serenas, tranquilas, respeitadoras do outro ponto de vista. Mas isso não acontece de modo nenhum.


Quando, com treino psicanalítico, se visita tais fóruns e se lê tais respostas, frequentemente inamistosas, à proposta do esperanto, pode-se concluir de imediato: «Reacções tão fortemente emocionais e agressivas indicam resistência a algo terrivelmente intimidante».


Naqueles fóruns há uma grande diferença entre as mensagens fortemente emotivas dos contrários ao esperanto e as mensagens por vezes emotivas de esperantistas. De tempos a tempos - claramente com menos frequência - aparecem também reacções de esperantistas com forte carga emotiva. Mas não se trata do mesmo tipo de emoção. A emoção presente nas mensagens de esperantistas é de cólera ou indignação, nunca de medo. Cólera por que se fala depreciativamente da língua sem basear esse sentimento num saber real, experiência ou mesmo informação objectiva. Cólera por incessantemente se afrontar algo que para os esperantistas é objectivamente bom e não prejudica ninguém. Indignação pela injustiça que o uso generalizado do inglês cria, ou pela injustiça de comentar o esperanto sem honestamente o considerar.


Mas as mensagens anti-esperanto manifestam uma fonte de emoção diversa. Atacam, mas atacam não por cólera ou indignação, não por sede de justiça, mas por medo. Em muitos animais o medo torna-os agressivos. E as pessoas no fundo são animais e reagem animalescamente.


Por que é que os homens temem libertar-se da afasia sociogénica? Trata-se provavelmente dum assunto muito complexo, no qual se entrelaçam e interagem múltiplos factores. Provavelmente o medo maior é o de perder a protecção da tribo. A minha tribo tem a sua língua que a distingue de todas as outras tribos. A minha tribo protege-me, nela somos solidários, ajudamo-nos uns aos outros, compreendemo-nos reciprocamente. Aquela outra tribo é totalmente diferente. Eles têm costumes estranhos, estranhas maneiras de comportar-se, modo de pensar diferente. Talvez tenham ciúmes de nós, porque sentem que somos superiores. Nós somos os melhores, os mais belos, os mais inteligentes, os mais sábios, não é verdade? Isso é evidente. Se eles têm ciúmes de nós, isso é uma ameaça, porque eles querem tomar os nossos tesouros, ou simplesmente eliminar-nos para deixarem de ter perante si pessoas que lhes são superiores, algo para eles insuportável.


No íntimo do psiquismo, relacionar-se como igual com pessoas de outra tribo, de outro povo, de outra cultura é sentido como algo muito perigoso. Cada etnia tem a convicção de que está certa quanto ao modo de estar, à mundividência, à organização social, etc. Contactar directamente outras etnias, sem intermediários, é arriscar colocar em dúvida aquelas ideias básicas sobre nós e eles. Imagine-se! Como se os selvagens fossemos nós e não eles! Descobrir isso seria demasiado penoso para o nosso modo de pensar, o nosso modo de viver. Bem melhor é organizar as coisas de modo a que não nos arrisquemos a ter de encarar uma maneira totalmente diferente de compreender a vida, a ter uma referência à qual nos poderíamos comparar. E recusar compreender directamente o que dizem os outros é um bom método. A humanidade aplica pois, na comunicação linguística, um sistema que garante que a afasia que, de imediato, se experimenta quando nos relacionamos com outros povos, outros países, outras culturas, nunca será curada. Poder-se-ia classificar a afasia sociogénica entre os mecanismos de defesa do “eu” (ego) ou, porque em geral diz respeito a todo um povo, do “nós”.


Compreendam-me bem, eu não afirmo que a humanidade se recusará eternamente a curar-se, a libertar-se enfim da afasia sociogénica. Pelo contrário, eu não tenho dúvidas de que se aproxima rapidamente o tempo em que ela compreenderá o seu erro, compreenderá que vale a pena enfrentar o assunto e descobrir os outros povos. Isso ocorrerá certamente e há muitos sinais que indicam que a humanidade está cada vez mais próxima desse grande passo. Mas tal processo de cura precisa de tempo. E o melhor método para conservar a doença que nos protege, é negar que ela existe, que seja uma doença e que seja facilmente curável.


Tradukis Luis Ladeira