Claude Piron

Mito e Realidade


Quando eu era criança,diziam-me:"Não tenha medo de se perder. Use sua língua,pois quem tem boca vai a Roma". Mas mal atravessei a fronteira domeu país e defrontei-me com outra realidade: o idioma que falavamnão era o mesmo que o meu!


Aconselharam-me: "Quer se comunicar com estrangeiros?Use os idiomas que você aprendeu na escola!". Mas de que maneira,se através dos idiomas que aprendemos durante anos na escola malconseguimos balbuciar algumas frases?


Disseram-me: "Falando inglês, vocêserá compreendido em qualquer lugar do mundo!". Mas, um dia,num vilarejo espanhol, presenciei um acidente entre dois automóveis,onde os motoristas - um sueco e um francês - em vão procuravamse entender e se fazer entender pelos policiais espanhóis. Certavez, numa cidadezinha tailandesa, vi um angustiado turista tentar explicaro que sentia ao médico local, sem conseguir seu intento. Duranteanos trabalhei para a ONU e para a OMS, nos cinco continentes, e por todaparte, fosse na Guatemala, na Bulgária, no Congo, no Japãoou em qualquer outro país, constatei que através do inglêssó conseguia me comunicar com os empregados dos grandes hotéise das companhias de aviação


Disseram-me: "Graças àstraduções, culturas de todos os povos são acessíveisa todos". Mas quando comecei a comparar os textos originais com assuas traduções, encontrei tantos erros, que cheguei àtriste conclusão que "tradutore... traditore".


Disseram-me: "As grandes potênciasquerem ajudar o Terceiro Mundo, respeitando as culturas nacionais".Percebi, no entanto, que as mais fortes pressões culturais sãoexercidas pelo inglês e pelo francês. Em primeiro lugar, alíngua do país que concede o auxílio é sempreimposta nas relações com o país que o recebe. Entretanto,inúmeros problemas surgem quando, em programas de treinamento, ostécnicos dessas potências procuram, através de seusidiomas, fazer-se entender pelos treinandos, que não possuem emsuas línguas locais os mais elementares livros didáticos.


Disseram-me: "A instrução públicagarantirá a igualdade de oportunidades para todas as crianças".No entanto, vi, principalmente em nações do Terceiro Mundo,famílias ricas enviarem seus filhos aos Estados Unidos ou Inglaterra,com a única finalidade de aprenderem o inglês, enquanto quedo outro lado vi a grande maioria da população encarceradano próprio idioma nacional e submetida a essa ou aquela propaganda,permanecer num estado sócio-econômico inferior.


Disseram-me: "O esperanto fracassou".Entretanto vi, num vilarejo europeu, filhos de camponeses, após6 meses de estudo do esperanto, comunicarem-se fluentemente com visitantesjaponeses.


Disseram-me: "Falta ao esperanto umvalor humano". No entanto, aprendi o idioma, li suas poesias, ouvisuas canções. Nessa língua comuniquei-me com brasileiros,chineses, iranianos, poloneses e até com um jovem do Uzbequistão.E eis que o outrora tradutor profissional deve confessar a vocêsque essas conversas que manteve foram, sem dúvida, as mais espontânease profundas que, algum dia, experimentou num idioma estrangeiro.


Disseram-me: "O esperanto e a culturasão incompatíveis". Entretanto, onde quer que eu fosse,seja na Europa Oriental, na América Latina ou na Ásia,o nívelintelectual dos esperantistas era muito superior ao dos seus concidadãosde mesmo nível social. E quando presenciei debates internacionaisnessa língua, muito me impressiou o nível dos participantes.


Naturalmente, mencionei fatos dos quais fui testemunha.E a todos eu disse: Venham! Vejam! Existe algo extraordinário: umalíngua que resolve satisfatoriamente o problema da barreira lingüística.Vi um húngaro e um coreano discutirem sobre filosofia e políticanuma fluência inacreditável, para quem havia aprendido o esperantohá pouco tempo. E eu vi isso e muito, muito mais...


Mas retrucaram: "Nada disso nos interessa,pois é sabido que o esperanto não é um idioma natural".Sinceramente não entendo. Quando aquilo que vai dentro do coraçãodo homem, quando todos os seus impulsos, quando as mais sutis nuances doseu pensamento são comunicadas diretamente por meio de um idioma,dizem-me: "Esta língua não é natural".


Mas, então, o que é natural? Será,na falta de um idioma comum, a mudez de homens sedentos de diálogo? Seráa incompreensão causada por um idioma feito de gestos mal compreendidos? Seráa subnutrição cultural daqueles a que a diversidade lingüísticaimpediu o acesso a obras da cultura universal? Ou será "natural"o ridículo daqueles que, após anos e anos de estudo na escolanão conseguem se exprimir com clareza no idioma alheio? Vejo, issosim, a desigualdade e a discriminação lingüísticaprosperarem no mundo inteiro. Vejo diplomatas e especialistas, atravésde incômodos aparelhos, ouvirem de vozes alheias aquilo que o seuinterlocutor lhes quer comunicar. Será tudo isso, enfim, uma "comunicaçãoespontânea "?


Das duas uma: ou querem me enganar ou estou ficandomaluco!